Fortaleça o jornalismo: Assine a partir de R$5,99
Continua após publicidade

A voz do cérebro

Um novo sistema permite, pela primeira vez, que uma pessoa impossibilitada de andar, falar e abrir os olhos se comunique com o mundo

Por Cilene Pereira Atualizado em 4 jun 2024, 12h20 - Publicado em 2 abr 2022, 08h00

Ele não consegue mais se movimentar, falar e sequer abrir os olhos, mas foi capaz de fazer uma declaração de amor. Imobilizado por causa da esclerose lateral amiotrófica (ELA), um paciente alemão de 34 anos expressou o sentimento pelo filho, de 4 anos, por meio de uma frase estampada na tela de um computador: “Eu amo o meu lindo filho”, escreveu ele com a ajuda de um sistema que, pela primeira vez, possibilitou a um indivíduo nessas circunstâncias comunicar-se usando sentenças inteiras, muito além do “sim” e “não” que grande parte da tecnologia permite.

LEITURA - Registro dos sinais elétricos: ondas neurais -
LEITURA - Registro dos sinais elétricos: ondas neurais – (Wyss Center/.)

A ELA é uma doença que progressivamente afeta o sistema nervoso, levando à paralisia motora irreversível. Por essa razão, o paciente aos poucos perde a capacidade de executar as funções que requerem a ação dos músculos, como andar, falar, deglutir, respirar e abrir os olhos. Quando isso acontece, ele entra no estado que em inglês é chamado locked-­in, algo como trancado em si mesmo. Em português, a condição recebe o nome de pseudocoma. Nessa etapa, quando a janela para o mundo se fecha, encerrava-se também a única forma de comunicação possível, feita por meio do piscar ou com a ajuda de equipamentos como os que usou o físico britânico Stephen Hawking (1942-2018), que sofria de ELA. Os aparelhos viabilizam a expressão dos pensamentos em sistemas digitalizados, mas somente se o paciente controlar o movimento dos olhos. Caso contrário, a doença o obriga à terrível tribulação de viver aprisionado em si mesmo.

É nesse estado que se encontra o jovem cuja conquista mostrou ser possível reabrir uma fresta por onde a mente de pessoas como ele consiga expressar a própria voz. Diagnosticado em 2015, o paciente tem a identidade protegida. Sua jornada para preservar a interação com as pessoas ao seu redor começou em 2017, quando familiares procuraram os médicos da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Eles haviam criado um sistema que permitira a três pessoas em pseudocoma responderem “sim” e “não”. Àquela altura, o paciente começava a ter dificuldade para se comunicar movimentando os olhos. Aceito o pedido de socorro, os médicos iniciaram uma corrida contra o tempo. Era importante aproveitar as capacidades cognitiva e auditiva ainda presentes para detectar os modelos cerebrais a ser explorados. Isso foi feito por meio do implante de dois microeletrodos no córtex cerebral, área fundamental para a correta manifestação do pensamento.

Continua após a publicidade

Os dispositivos foram conectados a um sistema de tradução instalado no quarto do paciente (veja acima). Depois de muito treino, ele estava apto a selecionar mentalmente as letras de um teclado virtual. Tipo a tipo, as frases começaram a ser formadas. Na medida em que os olhos se fechavam, expandiam-se no cérebro o vocabulário e a velocidade com que os caracteres eram mencionados até alcançarem a marca de um a cada minuto. No dia 253 pós-implante, o paciente perguntou ao filho se gostaria de ver o filme Robin Hood, da Disney, brincou pedindo batata com curry e que pusessem cerveja no tubo de alimentação. Ainda disse à mulher que colocasse para tocar músicas da banda americana Tool. A declaração de amor ao filho significou o ápice desse processo. A história está relatada em artigo publicado na revista científica Nature Communications. Depois, contudo, o paciente perdeu a capacidade de se comunicar tão sofisticadamente, provavelmente porque o cérebro rejeita os implantes e os sinais elétricos estão mais fracos. É tolo, no entanto, pensar que o esforço foi em vão. As vitórias entregaram à medicina um horizonte de possibilidades. “Quanto mais cedo o sistema for adotado, melhores serão os resultados”, disse a VEJA Jonas Zimmermann, um dos médicos da equipe. “Mas teremos de trabalhar com outros pacientes e segui-los ao longo dos anos para obter os dados de que precisamos.” É isso. A voz da mente do rapaz alemão é apenas o começo de mais uma magnífica estrada trilhada pelo ser humano.

Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.