Ele não consegue mais se movimentar, falar e sequer abrir os olhos, mas foi capaz de fazer uma declaração de amor. Imobilizado por causa da esclerose lateral amiotrófica (ELA), um paciente alemão de 34 anos expressou o sentimento pelo filho, de 4 anos, por meio de uma frase estampada na tela de um computador: “Eu amo o meu lindo filho”, escreveu ele com a ajuda de um sistema que, pela primeira vez, possibilitou a um indivíduo nessas circunstâncias comunicar-se usando sentenças inteiras, muito além do “sim” e “não” que grande parte da tecnologia permite.
A ELA é uma doença que progressivamente afeta o sistema nervoso, levando à paralisia motora irreversível. Por essa razão, o paciente aos poucos perde a capacidade de executar as funções que requerem a ação dos músculos, como andar, falar, deglutir, respirar e abrir os olhos. Quando isso acontece, ele entra no estado que em inglês é chamado locked-in, algo como trancado em si mesmo. Em português, a condição recebe o nome de pseudocoma. Nessa etapa, quando a janela para o mundo se fecha, encerrava-se também a única forma de comunicação possível, feita por meio do piscar ou com a ajuda de equipamentos como os que usou o físico britânico Stephen Hawking (1942-2018), que sofria de ELA. Os aparelhos viabilizam a expressão dos pensamentos em sistemas digitalizados, mas somente se o paciente controlar o movimento dos olhos. Caso contrário, a doença o obriga à terrível tribulação de viver aprisionado em si mesmo.
É nesse estado que se encontra o jovem cuja conquista mostrou ser possível reabrir uma fresta por onde a mente de pessoas como ele consiga expressar a própria voz. Diagnosticado em 2015, o paciente tem a identidade protegida. Sua jornada para preservar a interação com as pessoas ao seu redor começou em 2017, quando familiares procuraram os médicos da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Eles haviam criado um sistema que permitira a três pessoas em pseudocoma responderem “sim” e “não”. Àquela altura, o paciente começava a ter dificuldade para se comunicar movimentando os olhos. Aceito o pedido de socorro, os médicos iniciaram uma corrida contra o tempo. Era importante aproveitar as capacidades cognitiva e auditiva ainda presentes para detectar os modelos cerebrais a ser explorados. Isso foi feito por meio do implante de dois microeletrodos no córtex cerebral, área fundamental para a correta manifestação do pensamento.
Os dispositivos foram conectados a um sistema de tradução instalado no quarto do paciente (veja acima). Depois de muito treino, ele estava apto a selecionar mentalmente as letras de um teclado virtual. Tipo a tipo, as frases começaram a ser formadas. Na medida em que os olhos se fechavam, expandiam-se no cérebro o vocabulário e a velocidade com que os caracteres eram mencionados até alcançarem a marca de um a cada minuto. No dia 253 pós-implante, o paciente perguntou ao filho se gostaria de ver o filme Robin Hood, da Disney, brincou pedindo batata com curry e que pusessem cerveja no tubo de alimentação. Ainda disse à mulher que colocasse para tocar músicas da banda americana Tool. A declaração de amor ao filho significou o ápice desse processo. A história está relatada em artigo publicado na revista científica Nature Communications. Depois, contudo, o paciente perdeu a capacidade de se comunicar tão sofisticadamente, provavelmente porque o cérebro rejeita os implantes e os sinais elétricos estão mais fracos. É tolo, no entanto, pensar que o esforço foi em vão. As vitórias entregaram à medicina um horizonte de possibilidades. “Quanto mais cedo o sistema for adotado, melhores serão os resultados”, disse a VEJA Jonas Zimmermann, um dos médicos da equipe. “Mas teremos de trabalhar com outros pacientes e segui-los ao longo dos anos para obter os dados de que precisamos.” É isso. A voz da mente do rapaz alemão é apenas o começo de mais uma magnífica estrada trilhada pelo ser humano.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783