A cada ano, 610 000 americanos morrem vítimas de doenças cardíacas, sendo a causa número um de óbito na América, de acordo com dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) — órgão americano de pesquisa na área da saúde. No Brasil, não é diferente: 300 mil pessoas sofrem infartos todos os anos, sendo 30% dos casos fatais; o que também configura a condição como a principal causa de morte no país. Os principais fatores de risco são hipertensão arterial e dietéticos, como colesterol e glicemia alta.
No entanto, o que pouco se sabe é que, mais do que evitável, a maior causa de óbitos do século XXI pode ser tratável e, em alguns casos, até revertida com alimentação — assim como diabetes tipo 2 e derrames (ou AVC), as chamadas doenças crônicas, de longa duração, com progressão lenta.
Quem defende a ideia é Michael Greger, clínico-geral americano e um dos maiores especialistas em nutrição da atualidade. Tudo começou quando viu a avó paterna ser sentenciada à morte aos 65 anos, após diagnóstico de doença cardíaca terminal — devido ao acúmulo de placas de gordura nas artérias do coração. Mas, para surpresa de todos, ela viveu mais 31 anos, sem remédios ou cirurgia, graças à mudança do tipo de alimento que levava ao prato.
Em tempos nos quais há tantas falsas promessas de cura fácil – até mesmo sobre doenças incuráveis – espalhadas pela internet, Greger faz sucesso ao mostrar o que, de fato, pode ser combatido com a mudança de alimentação.
Formado pela Escola de Agricultura da Universidade de Cornell e pela Escola de Medicina da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, é autor de quatro livros, incluindo o best seller “Comer Para Não Morrer” (Intrínseca),que acaba de chegar ao Brasil. Nele, o especialista explica o “milagre” familiar e revela o que há de mais recente e inovador em nutrição. De sua casa em Washington, ele falou a VEJA por telefone:
Quando o tratamento de doenças por meio de alimentação despertou seu interesse? Por volta dos 9 anos de idade, eu vi minha avó ser sentenciada à morte, aos 65 anos. Ela tinha uma doença cardíaca irreversível. O fluxo sanguíneo para o coração estava prejudicado devido ao acúmulo de gordura em suas artérias ao longo dos anos, e ela tinha fortes dores no peito e pernas. Acabou em uma cadeira de rodas. Foi quando minha avó ouviu falar de um médico chamado Nathan Pritkin, pioneiro na chamada “medicina de estilo de vida”, que se tornara conhecido por reverter quadros terminais de doenças cardíacas. O que aconteceu depois foi narrado na biografia do médico: após três semanas de uma dieta exclusiva à base de vegetais (plant based diet) e uma rotina gradativa de exercícios físicos, minha avó Frances não apenas saiu da cadeira de rodas, como viveu mais 31 anos, chegando aos 96.
Como isso aconteceu? Nossas artérias podem relaxar e ficar livres de gordura se ingerirmos mais vegetais verdes, frutas e alimentos naturais e integrais. Não sou eu que digo isso, é a ciência. Há estudos publicados. As pessoas passam a vida agredindo suas artérias com maus hábitos alimentares, falta de exercício, ou tabagismo. Depois os médicos prescrevem estatinas (medicamento para reduzir o colesterol ruim). Ao invés de evitar um ataque cardíaco, é preciso evitar o aparecimento do colesterol alto: tratar a causa, não a consequência. Por isso, nunca será tarde ou cedo demais para prevenir, tratar ou até mesmo reverter doenças crônicas, associadas ao estilo de vida da pessoa.
No seu livro, o senhor dá vários exemplos de reversão de doenças por meio da alimentação natural. Sim. O primeiro estudo sobre reversão de doenças cardíacas foi publicado em julho de 1990, pelo médico Dean Ornish ‘The Lifestyle Heart Trial’ (ou “ensaio sobre coração e estilo de vida”). Ele provou por meio de angiografia (exame médico utilizado para verificar anormalidades nas artérias e sistema circulatório) que casos de doenças cardíacas poderiam ser revertidas: artérias poderiam se dilatar sem drogas ou cirurgia. Estudos sobre reversão do diabetes tipo 2 datam da década de 70. Mas há trabalhos mais antigos, como casos de reversão de insuficiência renal, obesidade mórbida e pressão alta, que datam dos anos 50. Pense que não havia tantos remédios naquela época, até porque, tampouco, havia tantos casos de doenças crônicas. A esperança não vinha de drogas; vinha da comida.
Mas a herança genética também explica doenças crônicas. Nesses casos, qual é o impacto da alimentação? Genes são responsáveis por cerca de 20% das doenças crônicas comuns. Os outros 80% são provenientes de como vivemos e, principalmente, de como comemos. Pessoas de uma mesma família tendem a comer dietas semelhantes e, assim, tendem a ser acometidas por doenças crônicas semelhantes, como pressão alta, colesterol alto, diabetes tipo 2 e obesidade. A dieta é o contribuinte número um para que surjam doenças crônicas, mas também pode evitá-las e tratá-las. Se fizermos parte de uma família que come uma dieta baseada em vegetais, nossos parentes provavelmente terão baixo índice de risco de desenvolver doenças cardiovasculares. Por outro lado, se somos parte de uma família que abusa de carne ou laticínios, certamente o risco será maior. E, de novo, não por questão de genes, mas por hábitos alimentares. Genética pode até “apontar a arma”, mas o estilo de vida “puxa o gatilho”
O que é, afinal, uma dieta saudável? A melhor base científica disponível evidencia que a dieta saudável é aquela que minimiza a ingestão de alimentos processados e carnes, e maximiza a ingestão de vegetais, feijões (soja, ervilha seca, grão de bico e lentilha), frutas em geral e grãos integrais (quinua, arroz, aveia, trigo sarraceno). Vegetais da família dos brócolis, os chamados crucíferos, podem prevenir danos ao DNA das células e serem promissores agentes anticâncer devido, acredita-se, a um componente que se forma quase que exclusivamente nestes tipos de vegetais. Alimentação, de fato, trata doenças.
Medicina convencional aliada à dieta à base de vegetais sempre terá melhores resultados? Apenas um quarto das universidades americanas de medicina possui nutrição na grade curricular. Logo, médicos ainda têm pouco conhecimento sobre propriedades dos alimentos e seus efeitos. Tampouco há incentivo para isso. Na prática clínica, há forte influência de grandes corporações farmacêuticas: primeiro vem o remédio, depois qualquer outra alternativa. Por fim, meus colegas dizem que não acreditam que seus pacientes irão seguir este tipo de orientação.
Por quê? A maioria dos médicos come mal. Vai dizer o que para quem busca ajuda? Voltemos aos anos 50, quando muitos médicos americanos fumavam. Como estes profissionais podem se sentar em suas mesas de trabalho, com os dedos cheirando a nicotina e dizer para que seu paciente pare de fumar? É a mesma lógica para a alimentação. Um paciente não deve esperar para mudar hábitos alimentares ruins apenas quando médico disser que é necessário.
Não seria radical dizer que tal estilo de vida é 100% garantia de não ter doenças? Isso significa que numa escala de um a dez, a dieta americana estaria em um. Logo, se você me perguntar sobre pessoas normais com dieta-padrão, eu digo que a dieta regular de hoje é terrível. Crianças com 10 anos de idade já começam a ter estrias de gordura no coração e não sentem absolutamente nada; mas isso poderá ser a causa de morte da maioria delas.
Poderia explicar melhor? Doença arterial coronariana, ou aterosclerose (endurecimento das artérias) começa na infância (estudo de 1953, com americanas durante a Guerra da Coreia, publicado no Jornal da Associação Americana- JAMA) e não do dia para a noite. Aos 10 anos de idade, quase todas as crianças dos EUA com a dieta americana padrão já têm estrias de gordura se acumulando dentro das artérias; é a primeira fase da doença. Essas estrias se transformam em placas de gordura quando temos 20 anos e pioram com o passar do tempo. No cérebro, isso se transforma em AVC. As pessoas podem comer gordura, açúcar, fritura e processados durante a juventude e, aparentemente, estarem ótimas. Mas o que, de fato, está acontecendo em suas artérias? Comer bem não é suficiente. É preciso comer o suficientemente bem para minimizar os riscos de doenças.
Há impressão de que, a cada dia, existe um novo vilão da alimentação. É possível ter tantas comprovações o tempo todo? Ler ou ouvir de alguém que a manteiga ou o bife que você come todo dia faz bem ou que, enfim, a ciência comprova que tal alimento é benéfico, vai vender revista. As pessoas adoram ouvir boas notícias sobre seus hábitos alimentares ruins. E é exatamente essa confusão que a indústria alimentícia quer promover. E o sistema é tão eficiente que as pessoas seguem comprando e consumindo produtos industrializados. E, sim, a fonte de conhecimento é grande, mas os temas relevantes, tudo o que falamos até agora, não mudou muito.
Sendo médico vegano, há quem o critique, dizendo que o senhor é um defensor da causa por razões óbvias. Faz sentido? Eu não defendo uma dieta vegetariana ou vegana. Eu defendo uma dieta baseada em evidências, e o melhor equilíbrio disponível é o que a ciência sugere: quanto mais alimentos vegetais integrais comermos, melhor. Como médico, rótulos como ‘vegetariano’ ou ‘vegano’ apenas me dizem o que você come ou não come. É por isso que eu prefiro o termo nutrição baseada em vegetais. É como se a indústria do tabaco criticasse os cientistas da American Lung Association (Associação Americana do Pulmão) por serem tendenciosos porque não são fumantes. Suas opiniões sobre os cigarros não levaram às suas conclusões científicas, suas conclusões científicas os levaram às suas opiniões. Há coisas melhores para respirar do que fumar e há coisas melhores para comer do que carnes ou laticínios.
As indústrias de carne e laticínios trabalham para matar pessoas? Carnes e laticínios estão relacionados a vários tipos de câncer. E não sou eu quem diz isso; está na lista de alimentos cancerígenos da Organização Mundial de Saúde (OMS). A definição de carne processada (bacon, salsicha, presunto) e, provavelmente não processada, além de produtos lácteos, podem contribuir para doenças cardíacas, derrame, insuficiência renal, entre outras condições. Com a ajuda de algumas bactérias intestinais, a carnitina, encontrada em produtos de origem animal, pode ser convertida em uma toxina conhecida por TMAO, o que contribui para o aparecimento de aterosclerose, por exemplo. Outro carcinogênico é a fumaça de tabaco. Mas os motivos de tais industrias são os mesmos de qualquer outra: ganhar dinheiro. Fiz uma série sobre ovos no meu site (o NutritionFacts.org, o maior portal sem fins lucrativos sobre ciência e nutrição).
No seu livro, o senhor fala sobre a ingestão diária de 11 grupos de alimentos, entre vegetais, frutas, castanhas e temperos, que seriam ideais para a manutenção da saúde. Como chegou a estas conclusões? Levei 17 anos para concluir esta lista que mostro no livro. Esses 11 grupos de alimentos são resultados de grandes estudos e parecem dar o melhor retorno possível para o corpo humano. Há muitos anos, diariamente, leio, pesquiso e reviso os principais trabalhos sobre nutrição. Também falo da importância de 150 minutos de exercícios aeróbicos moderados semanais (caminhada, bicicleta, limpar a casa).
Como analisam os efeitos de um alimento? Por meio de exames específicos, é possível mostrar que a função da artéria humana está prejudicada em poucas horas após comer uma refeição rica em gordura saturada. Também é possível realizar ensaios clínicos randomizados (nos quais há divisão aleatória de pessoas em dois grupos e provar se a doença é acelerada, interrompida ou revertida por escolhas alimentares), acompanhar grandes populações e suas dietas ao longo do tempo, além de ver quais componentes de suas dietas estão associadas a quais resultados de uma doença crônica. Há muitas maneiras.
No seu livro, o senhor cita um estudo de pesquisadores brasileiros com a castanha-do-pará: a ingestão de quatro foi suficiente para reverter o colesterol ruim — nove horas após a ingestão dos frutos. Mas o estudo foi feito com 10 pessoas. Confiamos em amostragens tão pequenas? A razão de as grandes empresas fazerem testes com milhares de pessoas se dá pelo risco de efeitos adversos. Se uma droga tem risco de matar uma pessoa que a toma, é outra condição e, claro, exige maior comprovação. Outro exemplo é o resultado preciso de uma droga para certo tipo de doença; logo, é preciso medir seus efeitos. Mas, alimento, se não vai machucar ninguém, você não precisa de testes populacionais. Se você tem um resultado tão significativo como esse, você não precisa testar em um grupo imenso de pessoas. Tudo o que você recebe são benefícios.
As pessoas ainda morrem em decorrência do envelhecimento? Em um estudo com mais de 42 000 autópsias, descobriu-se que centenários, ou seja, aqueles que passaram dos 100 anos, em 100% dos casos examinados, sucumbiram a doenças. Embora a maioria tenha sido avaliada como saudável por seus médicos, nenhum “morreu de velhice”. Vão morrer de doenças sendo as cardíacas, hoje, a maior causa de morte da atualidade.