As cirurgias realizadas no hospital Houston Methodist, no Texas, Estados Unidos, passaram a contar recentemente com os ouvidos atentos de um sistema de ativação por voz semelhante ao que equipa a Alexa, da Amazon. Também desenvolvido pela empresa de Jeff Bezos, o dispositivo registra as etapas vitais do procedimento, permitindo ao médico confirmar verbalmente as ações realizadas, como a aplicação de anestesia ou uma incisão específica. No final da operação, o sistema produz um relatório eletrônico sobre o trabalho executado pelo corpo clínico e o comportamento do paciente. Erros são notificados para eventuais correções de rota. Nos consultórios, a mesma tecnologia escuta — e grava — as trocas de informações. “Em vez de digitar a anamnese no teclado do computador, eu me concentro no que a pessoa do outro lado da mesa tem a dizer”, relatou um médico que participa do experimento.
As iniciativas descritas acima correspondem a apenas uma parte do novo e ambicioso plano da Amazon: ser uma das maiores, senão a maior, empresas de saúde do Estados Unidos. No fim do ano passado, o gigante já havia lançado o serviço de farmácia on-line para a entrega de medicamentos em território americano. A operação logística eficaz, que a permite chegar rapidamente a qualquer lugar, e sua escala monumental, o que faz com que seus preços sejam mais baixos, deverão em breve tornar a Amazon líder na venda de remédios, superando inclusive redes de farmácias tradicionais. A empresa, portanto, vale-se de sua infraestrutura formada por um império de depósitos e milhares de motoristas de entrega para repetir, no setor farmacêutico, o que faz no delivery de eletrônicos.
Agora, o foco da companhia está voltado para a área mais reluzente da saúde: a telemedicina. A expectativa é que, entre o fim de 2021 e o início de 2022, grandes centros urbanos possam contar com o serviço, cujo modelo operacional é mantido a sete chaves pela companhia. Segundo a imprensa americana, a empresa estuda também a abertura de clínicas para atendimentos de urgência e exames laboratoriais. “Se a Amazon descobrir como decifrar os segredos da saúde, será melhor sair da frente”, disse o analista Brent Thill, do banco de investimentos Jefferies, em entrevista ao jornal Financial Times. Na verdade, ela está interessada em um mercado que movimenta 4,2 trilhões de dólares por ano nos Estados Unidos e que tem gargalos a serem explorados.
O apetite da Amazon por novos negócios é o retrato de uma característica marcante do mundo corporativo neste século: a concentração de poder em um grupo pequeno de empresas. As chamadas Big Techs — designação que inclui, além da Amazon, colossos como Apple, Facebook, Google, Microsoft e Netflix — desfrutam um poder de fogo provavelmente só comparável aos monopólios da era dos barões do petróleo. O tamanho extraordinário dessas empresas pode ser compreendido a partir de simples comparações. O valor de mercado da Amazon, estimado em cerca de 1,6 trilhão de dólares, supera o tamanho da economia brasileira.
Como as Big Techs ficaram tão grandes? Elas são resultado da ascensão da tecnologia, que passou a permear praticamente todas as atividades humanas. Com o tamanho, vem o poder. Uma simples mudança no algoritmo de buscas do Google influencia decisões de compras de consumidores. Uma pane nos sistemas do Facebook paralisa atividades econômicas em diversas partes do mundo, exatamente como se viu há duas semanas. Os preços praticados no marketplace da Amazon regulam o mercado e dão pouca margem de manobra para os rivais. Ser gigante, porém, não significa ser infalível. Não há Big Tech que não tenha errado em algum momento de sua trajetória. Lançado em 2019, o Google Glass foi um fiasco monumental. A Amazon tentou ingressar no mercado de smartphones, mas não conseguiu. Como será agora na área da saúde? É impossível saber com certeza. Na China, o Alibaba tem vários braços no ramo médico, e todos são bem-sucedidos, especialmente o diagnóstico de doenças feito por uma inteligência artificial. A Amazon quer seguir o mesmo caminho. Como se vê, saúde financeira para isso não falta.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760