Antidepressivo na gravidez ainda é um mistério, diz estudo brasileiro
Pesquisadores brasileiros sugerem testes com minicérebros para investigar o impacto desses medicamentos no neurodesenvolvimento dos bebês
A depressão pode afetar até 15% das mulheres grávidas. Com a ajuda de medicamentos antidepressivos, a maioria recupera o bem-estar. Porém, ainda que o uso desses medicamentos durante a gestação seja seguro e tenha o aval da ciência, os efeitos dessas substâncias no neurodesenvolvimento ainda são pouco compreendidos e deveriam ser estudados com auxílio de tecnologias mais avançadas que permitem avaliar aspectos genômicos. A conclusão é de um grupo de cientistas brasileiros que analisou mais de uma centena de trabalhos científicos sobre a exposição pré-natal a essas substâncias, com destaque para a sertralina, o remédio mais prescrito no mundo.
“A maior parte dos trabalhos que encontramos são pesquisas observacionais e estudos feitos em laboratório com culturas de células e animais, cujo desenvolvimento cerebral difere muito do que ocorre em humanos. Não oferecem dados suficientes para levar a resultados conclusivos”, afirma o neurocientista Alexandre Kihara, do Laboratório de Neurogenética da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Paulo. “Por isso, estamos propondo um modelo experimental de ensaios com a utilização de células-tronco humanas de pluripotência induzida [hiPSC] para investigar o que acontece com as células nervosas em desenvolvimento no útero de mulheres durante o tratamento com antidepressivos”, diz a doutora em epigenética Luciana Rafagnin Marinho, também da UFABC. Ela e Kihara estão entre os principais autores de um artigo sobre o tema publicado on-line na revista Seminars in Cell & Developmental Biology e futuramente disponível na versão impressa. O estudo foi realizado com apoio da FAPESP.
As células hiPSC podem gerar organoides cerebrais ou minicérebros. Há perspectivas de que os organoides cerebrais humanos possam ser usados para investigar condições neurodegenerativas, como as doenças de Parkinson e Alzheimer, e em testes com medicamentos de ação neurológica.
“Com essas estruturas seria possível testar diferentes concentrações de medicamentos e acompanhar a evolução das células cerebrais até o terceiro trimestre de desenvolvimento”, explica o neurocientista e coautor do estudo Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia (UCSD), nos Estados Unidos. À frente de um laboratório de genética que leva seu nome, Muotri é pioneiro no desenvolvimento de organoides cerebrais e no estudo do autismo e síndromes relacionadas. “Na verdade, podemos acompanhar os organoides por até um ano. Nesse período, é possível observar aspectos do seu desenvolvimento como a morfologia e a eletrofisiologia dos neurônios individuais ou em formação de redes”, detalha o pesquisador, também cofundador de uma startup de biotecnologia no Brasil, a Tismoo.
Para exemplificar os avanços possíveis, Marinho menciona o único trabalho entre os mais de cem estudos avaliados que recorreu aos organoides celulares. “Ainda inicial, um estudo que avaliou o impacto do uso do antidepressivo paroxetina identificou diminuição do crescimento de neuritos [ramificações neuronais que permitem a aproximação com outros neurônios] e da população de oligodendrócitos, responsáveis pela produção da bainha de mielina de neurônios e, portanto, importantes para o trânsito de informações no sistema nervoso”, descreve a pesquisadora.
Os cientistas alertam também para a necessidade de empregar recursos como a análise da expressão gênica completa (transcriptoma) em célula única (single-cell RNAseq), neste caso, de um organoide. “Essa tecnologia permite conhecer o impacto da exposição a um antidepressivo sobre diferentes tipos celulares, como as células progenitoras, células da glia e neurônios”, relata Kihara. “Isso é particularmente importante porque as alterações podem não estar restritas aos neurônios. Precisamos conhecer essas implicações.”
O tema, naturalmente, exige muita cautela. “Não estamos dizendo, de maneira alguma, que não se deve usar antidepressivos na gestação. Estamos propondo um modelo experimental e ressaltando a necessidade de estudar sua ação no neurodesenvolvimento com os recursos mais avançados que temos na atualidade para, inclusive, gerenciar as potenciais alterações”, enfatiza o neurocientista Kihara.