No passado de um adulto com ansiedade pode ter vivido uma criança com preocupações desproporcionais, medos paralisantes, que suava ou sentia taquicardia antes de festinhas, apresentações na escola e passeios. É na infância, afinal, a fase na qual emergem até 80% das questões crônicas de saúde mental. No caso da ansiedade, estudos apontam que o transtorno em níveis que interferem nas atividades rotineiras é enfrentado por 7% a até 30% das crianças e adolescentes, segundo a literatura científica. Porcentagem tão expressiva vinha colocando em alerta médicos e outros profissionais de saúde antes mesmo da pandemia de Covid-19.
Agora, a ansiedade precoce alcançou um patamar de gravidade tamanho que, na semana passada, a Força-Tarefa de Serviços Preventivos dos Estados Unidos — comitê de especialistas que monitora e aponta estratégias contra as principais doenças crônicas — recomendou que, a partir dos 8 anos de idade, todos sejam submetidos a uma triagem para detecção da enfermidade apresentando ou não sintomas. É a primeira vez que é dada uma orientação do tipo, o que só evidencia a urgência em enfrentar o problema. “Fazer a avaliação é uma maneira importante de ajudar a proteger a saúde mental de nossa geração mais jovem”, explica a VEJA a psicóloga Lori Pbert, integrante do grupo.
A ansiedade não deve ser interpretada como algo totalmente negativo. O medo e a preocupação são ferramentas instintivas que ajudam a evitar riscos e a agir diante de perigos. O contorno patológico aparece quando o sentimento passa a ocorrer com frequência e sem uma explicação concreta, impactando tarefas simples. No caso da população pediátrica, é preciso entender que crianças mais novas tendem a manifestar comportamentos que podem ser vistos como ansiosos, mas eles se estabilizam com o passar dos anos. Isso faz parte do desenvolvimento da habilidade de trabalhar as informações e reagir diante dos acontecimentos do dia a dia. O processo ocorre com mais intensidade na faixa dos 3 aos 5 anos e continua, de forma gradual, durante a adolescência e a fase adulta. Até por essas razões, os americanos fixaram como linha de corte para a triagem os 8 anos em diante. O foco é a detecção de comportamentos que extrapolam os esperados em relação a novidades ou ocasiões especiais, como a resistência em participar de atividades escolares e a recusa a convites para dormir na casa dos amigos. A rejeição em participar, quando sinal de angústia e o sofrimento, pode ser também manifestada em sintomas físicos, como dor de barriga ou de cabeça.
Apesar de a ciência apontar que filhos de ansiosos têm duas a três vezes mais chances de apresentar o problema, há outros fatores relacionados. Nos anos 2000, a Associação Americana de Psicologia publicou um artigo apontando o aumento da ansiedade em crianças de 20% no período de 1952 a 1993. O contexto da época que levava aos resultados era de famílias menores, redução do contato social, preocupações com a possibilidade de uma guerra nuclear e a eclosão do HIV, cujos primeiros casos surgiram em 1981. De lá para cá, as circunstâncias mudaram. Uma das mais relevantes é a superexposição às telas, por meio de videogames, tablets e celulares. No universo virtual, os pequenos entram em uma montanha-russa de emoções, com enxurradas de recompensas e estímulos que não se reproduzem na vida real. “Eles não aprendem a esperar porque o cérebro fica condicionado a ter sempre uma resposta rápida”, diz Ana Paula Scoleze Ferrer, do Instituto da Criança e do Adolescente, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). A esse cenário, somam-se a rotina com excesso de atividades extracurriculares e o pouco tempo para brincar, fundamental para a elaboração das emoções. Com a pandemia, isso se agravou. Isolados em casa com pais que lidavam com o medo da doença, da morte e das consequências econômicas, os pequenos se viram sugados pela mesma bolha de sofrimento. Dados da Organização Mundial da Saúde apontam que uma em cada cinco crianças passou a apresentar sintomas.
O mesmo arsenal que ajuda a controlar o distúrbio em adultos está à disposição dos pequenos. Há remédios se for preciso, mas o caminho a ser tentado primeiro é a terapia cognitivo-comportamental, uma espécie de treino por meio do qual o indivíduo fica apto a perceber quando começa a pensar de maneira ansiosa e, a partir daí, interromper a cadeia que o levará a igual comportamento. O processo, ressalte-se, exige a participação da família. “É vital para que o enfrentamento dê certo”, afirma Fernando Asbahr, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. O cuidado no presente evitará a ansiedade no futuro.
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812