O telefone de Albert Bourla, presidente mundial da farmacêutica americana Pfizer, tocou em Nova York às 19 horas em ponto do dia 11 de novembro de 2020. Do outro lado da linha, onde já eram 2 horas da madrugada, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, foi direto ao ponto: ele queria reservar doses da recém-anunciada vacina contra a Covid-19 desenvolvida pelo laboratório. “Bourla pôs seu assessor jurídico na linha, eu coloquei o meu e começamos os acertos”, contou Netanyahu em conversa por Zoom durante o Fórum Econômico Mundial. Àquela altura, o tom de Bibi, como é chamado, já era de puro orgulho, e com razão — Israel ostenta hoje o primeiríssimo lugar na imprescindível corrida da vacinação, a fresta luminosa por onde a humanidade espera se livrar da prisão imposta pelo novo coronavírus.
Negociação com farmacêuticasModerna e AstraZeneca
Ao todo, foram 21 telefonemas, cerca de cinco por dia. Graças à persistência e ao envolvimento pessoal de Netanyahu, que se repetiu em negociações com as farmacêuticas Moderna e AstraZeneca, o país pode agora exibir números espantosos: 39% da população recebeu a primeira dose da vacina e, entre os acima de 60 anos, 90% já levaram a segunda dose. Nesse cenário, os israelenses, habituados que estão aos lockdowns, começam a mirar a normalidade perdida. “Pela primeira vez em muito tempo, sinto-me esperançosa e animada”, disse a VEJA Sara Cupperschmidt, brasileira de 74 anos que mora em Israel há seis. “Torço para toda a família estar junta em Pessach (a Páscoa judaica, no fim de março). No ano passado fizemos por Zoom”, acrescenta ela, que tem filhos nos dois países e deu novo sentido às coisas simples, algo que todo mundo (literalmente) experimentou em algum grau.
Na lista das nações que mais vacinaram, o índice israelense está em 69,4 doses por 100 habitantes (no Brasil, 2 — veja o ranking na pág. 53). Tudo indica ser o princípio do fim da pandemia, uma vez que para chegar lá é preciso atingir a chamada imunidade de rebanho, quando a quantidade de pessoas imunizadas, ou pela vacina ou por já ter pegado a doença, é suficiente para barrar a contaminação em larga escala. Para alcançar tal estágio, o número mágico mais aceito, fruto de modelo matemático complexo, é de um universo de 70% imunes — a porta de entrada para uma vida em que máscaras e distanciamento social deixam de ser prioridade, embora sejam aconselháveis. Bem antes disso, porém, a vacinação tem impacto decisivo, ao reduzir drasticamente a incidência de casos graves.
Vacinação do Covid 19
Em Israel, o Instituto Weizmann de Ciência calcula que, entre os que já receberam as duas doses, houve, no breve período de meados de janeiro a início de fevereiro, diminuição de 41% nos novos testes positivos, de 31% nas hospitalizações e de 24% nas crises severas. De quase meio milhão de pessoas duplamente vacinadas, entre a população de 9 milhões, apenas 254 tiveram Covid-19 leve, sem necessidade de atendimento médico. Os bons resultados surgiram catorze dias após a primeira dose e se intensificaram uma semana depois da segunda. “Israel é a prova de que vacinar em massa os grupos prioritários, em especial os idosos, muda o rumo da pandemia”, diz a infectologista Mirian Dal Ben, do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo.
Outros exemplos comprovam que a imunização é arma essencial contra o contágio e se torna mais potente ainda se associada a testagem ampla e adoção de lockdowns. No Reino Unido, na marcha da vacinação desde dezembro, constatou-se queda de 37% nos infectados. Nos Estados Unidos, que caminha para a aplicação de 1,5 milhão de doses por dia, os testes positivos encolheram 38%. Israel, um caso à parte, se destaca não só pelo sucesso em garantir o fornecimento adequado de vacinas, mas também pelo desempenho excepcional no ritmo de distribuição — agentes as aplicam em tendas 24 horas por dia. A título de comparação, o Reino Unido, que estreou o mesmo imunizante onze dias antes, administrou um terço do que a média proporcional de doses aplicadas em israelenses. Embora com um bom ritmo de vacinas administradas, cerca de 230 000 por dia, os brasileiros estão atrás na corrida, com quatro semanas de imunização. Só agora idosos acima de 90 anos receberam a tão aguardada espetadela — a atriz Fernanda Montenegro, 91, foi um dos famosos saudados nesta fase.
Vacina Coronavac
O Brasil conta com uma azeitada engrenagem para campanhas de vacinação — tanto que as doses iniciais da CoronaVac saíram de São Paulo na manhã da segunda-feira 18 e na tarde seguinte já estavam sendo administradas em todos os estados. Mas não há estrutura bem montada que consiga anular de todo os danos provocados pela precariedade — e má vontade inicial — do governo federal em relação à imunização em massa dos brasileiros. As doses asseguradas até a tarde de quinta-feira 11 totalizam 300 milhões, 25 milhões a menos do que o necessário para oferecer duas a cada homem e mulher acima dos 18 anos. No momento, o Brasil está distribuindo os 11,8 milhões de doses que tem na mão — 2 milhões da AstraZeneca-Oxford e 9,8 milhões da chinesa CoronaVac. De descaso em descaso, de protelação em protelação, o Ministério da Saúde chegou à inconcebível situação em que só não se vacina mais no país por falta de imunizante disponível.
No início de dezembro, enquanto o Brasil ainda patinava na compra de vacinas, Netanyahu e seu ministro da Saúde, Yuli Edelstein, foram ao aeroporto receber pessoalmente o primeiro carregamento. “É um momento emocionante, para o qual trabalhei muito”, vangloriou-se Bibi na ocasião. Dias depois, os dois foram imunizados ao vivo e em cores, dando início à campanha Voltando à Vida. O Ministério da Saúde espalhou por toda parte anúncios e explicações sobre a vacina e seus benefícios. Médicos e funcionários passaram a frequentar os programas de TV e rádio, respondendo a dúvidas da população. O sucesso da campanha israelense tem seu maior alicerce na rede de saúde pública. Todos os cidadãos estão inscritos em um dos quatro planos gratuitos, financiados pelo governo e por doações. Altamente digitalizado, cada sistema está utilizando suas clínicas e hospitais próprios, além de estádios e centros de convenção, para vacinar uma população, em geral, para lá de motivada para isso. Quem marcou hora é recebido sem filas nem burocracia (e, ressalve-se, tem sido assim no Brasil também, apesar de tudo). Os postos contam com divisórias e, dentro das baias, enfermeiros atendem quem chega. As pessoas só precisam responder a três perguntas: se têm histórico de alergia, se já pegaram Covid-19 e, no caso das mulheres, se estão grávidas. Depois, é necessário esperar quinze minutos para assegurar que não há reações imediata e ir embora.
Medidas preventivas sobre o COVID-19
Netanyahu reza, em grande parte, pela cartilha nacionalista-populista de direita de Jair Bolsonaro e Donald Trump. Também foi muito criticado ao longo da pandemia por não tomar medidas decisivas a respeito do uso de máscara e do isolamento social — embora tenha, sim, ao contrário dos colegas negacionistas, decretado lockdowns de curta duração e fechado fronteiras. Quando a vacina chegou, porém, o primeiro-ministro fez uma aposta estratégica: usar a campanha de imunização como um muito necessário trunfo político a favor de seu partido, o conservador Likud, na eleição do dia 23 de março — a quarta de Israel em dois anos. Netanyahu ainda enfrenta os tribunais: está sendo julgado por corrupção e fraude (na segunda-feira 8, compareceu em pessoa à primeira audiência e se declarou inocente, em um processo que deve se arrastar por alguns meses). É com imensa vontade política, portanto, que o primeiro-ministro fixou o fim de março como prazo para que todos os israelenses acima de 16 anos estejam imunizados. Seu próprio futuro está em jogo.
No intuito de reforçar seu voo eleitoral, Bibi não regateou com a Pfizer: pagou entre 15 e 30 dólares (o preço não foi divulgado) pela dose, o que poderia ser o dobro dos países europeus. Concordou ainda em fazer de Israel uma espécie de cobaia, abastecendo o laboratório com todos os dados e estatísticas possíveis, em tempo real. “Uma semana a menos de lockdown compensa isso”, declarou, pragmático. O Reino Unido e até os Estados Unidos de Trump também fecharam com antecedência vastos contratos de fornecimento com a Pfizer, desde sempre a mais adiantada no desenvolvimento do antígeno. Já as negociações do governo brasileiro se estendem, inconclusivas, desde agosto. No contrato mais promissor em andamento, só no dia 7 de janeiro o governo federal pôs a assinatura na compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, imunizante que, na visão do Planalto, padecia de dois pecados: avalizava a até então enxovalhada “vacina chinesa” e tinha sido negociado por seu desafeto, o governador João Doria.
Imunização
Esperadíssimo passo à frente para a volta à vida normal, a vacina leva algum tempo para funcionar e precisa estar acompanhada de restrições rigorosas contra aglomerações. Em Israel, a sensação de luz no fim do túnel é palpável, embora cautelosa e pragmática. Há mais gente na rua aproveitando o sol de um inverno pouco rigoroso, mas os israelenses continuam a sair pouco de casa, atendendo à orientação do governo e evitando fazer qualquer coisa que prejudique o alívio tão próximo. Idosos que não viam os netos há meses voltam a recebê-los e a abraçá-los — sem beijos e de máscara, até porque a vacinação só é aplicada a maiores de 16 anos. A estudante Noa Levy, de tão ansiosa pela primeira dose, conseguiu convencer a equipe a picar seu braço um dia antes do previsto. “Queria me sentir segura e poder encontrar os amigos em meu aniversário”, diz Noa, que mesmo assim não pretende retornar por ora à escola. Ecoando um sentimento comum na população, ela afirma: “Sinto orgulho de estar no país número 1 em imunização”.
Passados dois meses do início da campanha israelense, o país ainda sofre os efeitos da terceira e maior onda de contaminações. Nos bairros habitados pelos judeus ortodoxos, que representam 12,5% da população e insistem em ignorar máscaras e distanciamento, os níveis de infecção são seis vezes superiores — no fim de janeiro, a foto de 10 000 aglomerados nas ruas de Jerusalém para acompanhar o enterro de um rabino chocou o país. Entre os árabes, que correspondem a 21% da população, muitos têm dúvidas quanto à segurança da vacina e, nesse grupo, os índices de hospitalizações e mortes permanecem elevados. Como os 4,8 milhões de palestinos nos territórios ocupados dispõem de um sistema de saúde próprio, não entraram na campanha israelense, apesar dos apelos vindos de todo canto. Só neste mês um primeiro lote foi cedido por Israel para imunizar equipes médicas da Autoridade Palestina. É provável que o fluxo continue e até cresça, bem como o estímulo à entrada de doações, visto que a proximidade das duas populações pode afetar o sucesso da imunização do país.
Apenas agora, com quase metade de seus habitantes vacinados pela primeira dose, Israel julgou prudente afrouxar as medidas de fechamento em vigor há mais de um mês. Os restaurantes podem vender refeições para viagem e os escritórios que não lidam com o público reabriram, assim como salões de beleza e parques. Também foi revogada a proibição de receber visitas em casa e só circular a pé em um raio de 1 quilômetro. As escolas começam a voltar às aulas nas áreas de menor contágio. Mas cinemas, teatros e comércio seguem fechados, com exceção de mercados e farmácias. E ainda permanece suspensa a maioria dos voos nos aeroportos do país, para evitar a importação de novas variantes do vírus. “As mutações, que se propagam com rapidez e afetam os jovens, complicaram a situação”, diz o biólogo Eran Segal, do Instituto Weizmann. “Mas posso afirmar, com cautela: a mágica começou”. Tomara que se espalhe pelo planeta e permita que, de novo, o dia possa nascer feliz em toda parte. Mazel tov.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725