Depois de dançar por 45 minutos, protagonizando dois solos de dança numa coreografia em homenagem à cultura indígena, todos me disseram que eu estava animada demais na coxia. Rindo e falando alto, algo incomum, pois sou mais contida. Lembro que realmente estava feliz naquela semana. Faltavam cinco dias para o meu aniversário de 21 anos e estava pensando em como iria comemorar. Mas aconteceu algo inesperado naquele domingo. Quando o espetáculo acabou, senti o braço e a perna direita puxando. Achei que poderia ser cansaço e até me apoiei na Renata, a minha coreógrafa. Depois disso, me contaram que eu já não conseguia mais ficar em pé nem falar. Trouxeram uma cadeira e um copo d’água.
Sei que foram os meus pais que me levaram ao hospital. Por insistência, eles foram assistir à apresentação, pois não iriam naquele dia. Já tinham me visto dançar tantas vezes, não seria algo inédito. Não sei o motivo, mas fiz questão da presença deles. Dos primeiros sintomas ao atendimento no hospital, foi menos de uma hora. Tive sorte, atenção e carinho. A assistência foi rápida, ponto fundamental quando estamos lidando com um AVC (acidente vascular cerebral). Ter pessoas que sabiam identificar aqueles sintomas, como fraqueza muscular, paralisia num lado do corpo e dificuldade para falar e caminhar, foi providencial.
Quando acordei, na segunda-feira ,no centro de terapia intensiva, estava confusa. Me lembrava só do final da apresentação de domingo. Foi quando a enfermeira me contou que eu havia tido um AVC isquêmico e passado por um procedimento minimamente invasivo, a trombectomia mecânica, um cateterismo para retirar o coágulo que estava entupindo a circulação no meu cérebro. Conhecia o AVC e seus sintomas por causa do meu avô materno, mas nunca achei que poderia acontecer comigo, e aos 20 anos de idade. Sempre associei AVC a pessoas mais velhas. Nunca descuidei da minha alimentação e do meu corpo por causa da dança. É a minha paixão desde os 2 anos, quando comecei a frequentar as aulas de balé. Também me formei em jazz e sapateado, inclusive pela escola do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Sempre dancei, estudei e, depois, passei a dar aulas.
Estava num ritmo acelerado? Sim. Mas a minha vida sempre foi assim. Entrando e saindo do transporte público para cumprir horários, ensaios e apresentações. Com a agenda disputada nos fins de semana com amigos, idas à igreja com a família e pouco tempo de sono. Aos 20 e poucos, a gente pensa mais em aproveitar a vida do que em dormir, né? Não sei por que aconteceu comigo. Assim como não sei explicar a presença dos meus pais naquele domingo. E como todos à minha volta tiveram a agilidade, num momento inesperado daqueles, de me levar ao hospital. Fui privilegiada por isso e por ter tido acesso a um tratamento inovador (ele acaba de ser incorporado pelo SUS).
No início, tive dificuldade para falar, mas contei com a ajuda incansável da minha prima fonoaudióloga. Fiz fisioterapia para alinhar o meu andar, as caminhadas, a força muscular. Estou voltando a fazer ponta, uma técnica avançada de balé, trabalhando a coordenação e a consciência corporal. Ainda há algumas coisas a melhorar, mas a maioria das pessoas nem percebe que eu tive um AVC. Continuo dançando, dando aulas e já voltei ao palco algumas vezes. Até criei uma coreografia para expressar a doença: ela lembra uma trilha em que subo por fendas, as fissuras que moldam as pedras, uma analogia aos impactos do AVC na minha vida. Também estudo terapia ocupacional com o intuito de apoiar outros que passam por um problema desses. Nunca tive vergonha do meu AVC. Acredito que é mostrando o que aconteceu comigo que posso ajudar as pessoas a se cuidar melhor.
Mariana Marques em depoimento dado a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874