A americana Emily Whitehead, de 17 anos, exibe ano a ano, orgulhosa, uma lousa na qual marca há quanto tempo está livre de câncer. Em maio, completaram-se dez anos. Aos 5, quando foi diagnosticada com leucemia linfoblástica aguda, um tipo de tumor hematológico que costuma acometer crianças, o prognóstico era dos mais desanimadores, e Emily foi submetida ao pesadelo de uma sucessão de tratamentos sem resultados, até ficar sem opção. Seus pais, Tom e Kari, decidiram então tomar uma decisão arriscada que, felizmente, mudaria completamente o cenário: inscreveram a filha na pesquisa de uma terapia experimental cujo objetivo era fazer uma das células de defesa do corpo, o linfócito T, reaprender a identificar e destruir as células cancerígenas. Era 2012, e o método havia sido usado com êxito somente em três adultos. Por sugestão dos médicos que cuidavam de Emily no Hospital Infantil da Filadélfia, nos Estados Unidos, a menina foi encaminhada aos pesquisadores, e o resto é história. Daquelas com final feliz, como se pode ver pelo sorriso largo de Emily na foto ao lado.
Emily foi a primeira criança do mundo submetida à terapia batizada de CAR-T (entenda sua forma de ação no quadro). Em 2017, o tratamento foi aprovado pela agência reguladora americana Food and Administration (FDA), sendo considerado pela instituição uma “nova fronteira em inovação médica” e um “ponto de inflexão para curar doenças intratáveis”. No Brasil, só recentemente a Agência Nacional de Vigilância Sanitária liberou a CAR-T, na forma de dois tratamentos: o Carvykti, da Janssen-Cilag Farmacêutica, e o Kymriah, da Novartis Biociências. Eles são indicados para três tipos de câncer que não respondem aos recursos convencionais: a leucemia linfoblástica aguda de células B, o linfoma difuso de grandes células B e o mieloma múltiplo. Antes disso, em 2019, o mineiro Vamberto Luiz de Castro, diagnosticado com linfoma não Hodgkin de alto risco, havia sido submetido à terapia ainda em fase experimental. Tratado no Hospital das Clínicas instalado no câmpus Ribeirão Preto da Faculdade de Medicina da USP, teve ótima evolução (infelizmente, faleceu depois de voltar a Minas Gerais, vítima de um acidente doméstico).
A empolgação do setor médico com o tratamento se justifica diante da alta taxa de cura em casos que antes resistiam a qualquer intervenção. “Com a CAR-T, na leucemia linfoblástica aguda a possibilidade de ficar curado é de 60% a 85%. Nos linfomas, de 50% a 60%. Os mielomas não têm cura, mas pacientes têm chance de sobrevida sem novas doenças de 80% nos quatro anos seguintes ao tratamento”, explica Nelson Hamerschlak, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “É uma revolução muito grande”, afirma. O Einstein faz parte de um grupo de hospitais brasileiros que pesquisam caminhos para baratear a terapia — sem contar internação e eventuais complicações, estima-se que ela custe atualmente algo entre 350 000 e 500 000 dólares.
Seguindo a mesma trilha, o Instituto Butantan, em São Paulo, inaugurou duas unidades, uma na capital e outra em Ribeirão Preto, com a meta de atender até 300 pacientes por ano a um custo que gira em torno de 100 000 reais. “Imagino que, no futuro, a terapia terá potencial de cura também para tumores sólidos, como os gastrointestinais e de mama”, anima-se Dimas Covas, presidente do Butantan. Mas existe a possibilidade de que venha a apresentar efeitos adversos, até fatais, como complicações neurológicas que podem terminar em coma ou distúrbios no sistema de defesa. Emily, com a firmeza de quem ganhou a parada, é a favor de respirar fundo e tentar. “A terapia pode oferecer um raio de esperança quando as opções ou a sobrevivência parecem frágeis”, disse a VEJA. Que os pacientes brasileiros que vão receber a terapia possam se recuperar e exibir igual otimismo.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795