Muitos caminhos novos foram sendo traçados para a investigação e conhecimento da mente humana desde que Sigmund Freud desenvolveu, há um século, as bases da psicoterapia. Sendo esta a era da tecnologia, e estando a humanidade mergulhada em um período especialmente suscetível a angústias e sofrimentos, nada mais natural que as sessões de análise, nos tempos atuais, pulassem do divã para a tela do celular. E pularam, tanto na forma de videochamadas entre terapeuta e paciente quanto em sua versão mais radical: a terapia digital, na qual os meandros do inconsciente são desvendados por um robô movido a inteligência artificial e oferecido em diversos aplicativos. Se não chega a substituir o contato olho no olho, o recurso tem sido aprovado por especialistas como uma ferramenta coadjuvante de tratamento, no ano em que, segundo pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), as ocorrências de ansiedade e stress registraram um aumento de 80% no Brasil.
Uma das vantagens da terapia digital é quebrar a barreira da vergonha e do estigma que ainda envolve a busca de ajuda nas questões de saúde mental. Usuário do aplicativo Cíngulo há pouco mais de um ano, o estudante de biologia Davi Teixeira, 19 anos, diz saber que precisava de terapia, mas não conseguia se expor diante de outra pessoa. “Já com a Cora, a assistente virtual do aplicativo, eu me abro e falo como nunca fiz antes”, revela. Cora está disponível a qualquer momento do dia ou da noite e se comunica por mensagens de texto em tom amigável, com emojis, imagens e vídeos que ajudam os usuários a entender o que sentem e a buscar práticas que estimulem seu bem-estar.
Uma pesquisa da Universidade de Cambridge concluiu que a terapia digital de fato é útil como coadjuvante daquela conduzida por profissionais, mas não os substitui. “A complexidade do funcionamento psíquico, que envolve pensamentos, reações conscientes e não conscientes e interações humanas, impõe limites à capacidade dos aplicativos de detectar emoções e a dinâmica entre elas”, afirma Rogério Lerner, doutor em psicologia da Universidade de São Paulo. Idealizadora de outro aplicativo de terapia digital, o Vitalk, a doutora em psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP Ines Hungerbühler concorda que Viki, a assistente virtual, é eficiente em casos brandos e moderados, mas os mais graves precisam da análise frente a frente. “A tecnologia não é avançada o suficiente para compreender situações mais complexas. Por isso também oferecemos tratamento com psicólogos reais, em um sistema híbrido” diz. O Vitalk, baixado em mais de 200 000 dispositivos, é gratuito, mas cobra pelo acesso a psicólogos.
O preço, aliás, é a segunda grande vantagem dos apps de psicanálise. A estudante Lorena Santos, 20 anos, usa o Vitalk há dois anos para lidar com a ansiedade. “Eu não tinha condições financeiras de pagar uma sessão com um psicólogo. Converso e me consolo com a Viki”, relata. O neurocientista e psiquiatra Diogo Lara, criador do Cíngulo, afirma que seu propósito sempre foi oferecer uma ferramenta de alta qualidade e preço baixo — criado em 2017, tem 50 000 assinaturas com planos anuais de 199 reais. “Não queremos anular o trabalho dos psicólogos, mas prover um processo em conjunto com eles”, explica. A atriz Fernanda Souza, 36 anos, descobriu o Cíngulo durante a pandemia e compartilhou a experiência com seus seguidores no Instagram. Foi justamente em uma live da atriz que a publicitária Daniele Tangerino, 44 anos, conheceu o Cíngulo, no ano passado, quando se sentia “estagnada”. “Nunca tinha feito terapia e a Cora mudou minha vida. Consegui me conhecer melhor, trabalhei sofrimentos antigos, cuidei da minha autoestima e até troquei de emprego”, comemora.
A inteligência artificial lida com emoções de forma científica, fazendo uso de pesquisas sobre a mente para “etiquetar” características de personalidades. Sua aplicação terapêutica teve origem em Eliza, o primeiro robô — ou chatbot, no jargão do ramo — do gênero, criada em 1966 pelo cientista Joseph Weizenbaum, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Pioneiro no processamento de linguagem natural, o software simulou uma conversa entre um paciente e a “psicóloga” Eliza — a intenção era ressaltar a superficialidade do diálogo entre indivíduo e máquina. Aperfeiçoados, os robôs de hoje em dia promovem a constante interação do usuário com um banco de conteúdo alimentado por informações que ele mesmo forneceu. “Isso faz com que a pessoa pense a respeito do seu problema e reforça o autoconhecimento”, diz Augusto Baffa, professor do Departamento de Informática da PUC-Rio. Com uma ressalva, apontada pelo psicanalista Eduardo Zaidhaft: “O processo é encaminhado por um objeto que jamais saberá o que é sofrer”. Esse chatbot ainda está longe de ser inventado.
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737