Como a cloroquina se transformou em instrumento de guerra ideológica
De efeitos positivos contra a Covid-19, mas não conclusivos, o medicamento está no centro de uma ridícula briga entre direita e esquerda no Brasil
Lá na frente, quando o olhar retroativo autorizar alguma razão, quando a pandemia de coronavírus passar, o mundo lembrará com espanto de um tempo, o nosso, durante o qual um medicamento virou droga a serviço da ideologia — embate que, no Brasil, se disseminou como vírus. A cloroquina (e sua versão menos tóxica, a hidroxicloroquina), comumente usada no tratamento de malária, lúpus e artrite reumatoide, e com supostos bons resultados em casos graves de Covid-19, é o nome da substância que alimentou os maus humores. Direto ao ponto, porque a contenda partidária atual não oferece sutilezas, infelizmente: a defesa da cloroquina virou coisa de direita radical, extremada; combatê-la é obrigação da esquerda. Assim está posto o jogo, por mais absurdo que seja.
No Twitter, ali onde vive, o presidente Jair Bolsonaro postou, em defesa do composto: “Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da Covid-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do Governador de SP?”. Ele se referia, muito provavelmente, ao cardiologista Roberto Kalil Filho, do Hospital Sírio-Libanês, e a David Uip, coordenador do Centro de Contingência ao Coronavírus do governo paulista. Kalil depois afirmou ter feito uso do químico (leia reportagem na pág. 74). O general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, ele mesmo recuperado da doença respiratória, também quis saber e pediu a Uip que se manifestasse publicamente (Heleno não disse se tomou cloroquina). Fernando Haddad, do PT, retrucou: “Bolsonaro acha que a eficácia da cloroquina é uma questão política e não científica. Enquanto isso, trabalhadores e empresários sem recursos para atravessar a tormenta. Desvia a atenção do que lhe cabe fazer. Lamentável”. A cloroquina alimentou também fogo amigo, como combustível entre o presidente e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que até a quinta-feira 9 se equilibrava no cargo e que considera aceitável ministrá-la, mesmo em casos leves, mas pede mais comprovações científicas de sua real eficácia. Não tardou para que, nas apostas de candidatos a candidatos à vaga de Mandetta, despontasse o nome da imunologista Nise Yamaguchi, que nas redes sociais tece loas à cloroquina.
O rastilho que chegou ao Brasil foi aceso quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, saiu divulgando as maravilhas da cloroquina, que imediatamente desapareceu das prateleiras de farmácias americanas, na contramão do que afirmavam as autoridades de saúde da rigorosa e respeitadíssima FDA, a agência reguladora de remédios (reportagem do The New York Times revelou, depois, que Trump tem ações na bolsa da Sanofi, a farmacêutica francesa que produz a droga). Bolsonaro, é natural, seguiu o caminho trilhado por Trump, e dele não sai. Ambos se ancoram em experiências bem-sucedidas como a de diversas instituições hospitalares americanas e, no Brasil, as do Hospital Albert Einstein e da rede Sancta Maggiore. Em todos os casos, a cloroquina foi usada em postura off label, expressão em inglês que define a aplicação de medicamentos comprovados para determinadas enfermidades em outras. Não há nada de antiético nessa decisão, é comum em momentos urgentes como o que vivemos, mas pressupõe cautela — cautela, aliás, que faltou ao microbiologista francês Didier Raoult, o primeiro a anunciar a recuperação de 70% de vinte pacientes de Marselha que tomaram o remédio associado a um antibiótico, a azitromicina (e, claro, na França também se dá a guerra químico-ideológica).
Há estudos que mostram a eficácia da cloroquina, como anti-inflamatório e capaz de bloquear a ação do vírus em células sãs, e eles não devem ser desprezados, ao contrário. Mas há outros trabalhos que freiam o entusiasmo, e são decisivos. Uma pesquisa anunciada pela Fiocruz e pela Fundação de Medicina Tropical revelou que a taxa de morte de pacientes graves da Covid-19 tratados com cloroquina equivale à de pacientes em iguais condições que não usaram o composto. Diz a intensivista Ludhmila Hajjar, coordenadora de ciência, tecnologia e inovação da Sociedade Brasileira de Cardiologia, uma das vozes mais respeitadas e sensatas do atual momento: “Os resultados são preliminares. Ainda não é possível afirmar que a cloroquina não funciona, mas também não dá para dizer que funcione”. Não é posição em cima do muro, ao contrário. É respeito à norma da medicina — sem resultados definitivos, acachapantes, é preciso calma.
Nos anos 1950, em uma situação menos premente, médicos europeus prescreveram um medicamento aprovado para insônia, a talidomida, inclusive para gestantes, dada sua suposta segurança e seu efeito inibidor dos enjoos matinais — ela ainda não tinha sido aprovada definitivamente para essa nova frente, mas funcionava. Anos depois, comprovou-se estar associada ao nascimento de bebês com deformação nos membros — no Brasil, inclusive. Convém ressaltar, na outra ponta, que há também episódios de substâncias usadas com pressa e que depois viriam a ser plenamente aceitas pela comunidade científica, como é o caso da cetamina, anestésico eficiente em depressão.
Tudo somado, divulgar com estardalhaço as benesses da cloroquina é desserviço à saúde é à democracia. Nas palavras duras e certeiras de Ludhmila: “Não podemos basear uma prática médica em achismo. Seria voltar à Idade Média”.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682