Contra infarto, a angioplastia entra agora na era da inteligência artificial
Ela é indicada a oito em cada dez pacientes com entupimentos nas artérias do coração
No início do século XX, o patologista alemão Felix Marchand (1846-1928) introduziu o termo “aterosclerose” para definir o acúmulo de placas de gordura nas artérias, uma condição que depois seria acusada de ser o principal fator por trás de um ataque cardíaco. Até 1977, a única maneira de destravar o fluxo sanguíneo obstruído nos vasos do coração era abrir o peito do paciente e operá-lo. Nesse ano, porém, outro alemão, o cardiologista Andreas Gruentzig (1939-1985), realizou, com êxito, o primeiro procedimento minimamente invasivo que serviria de alternativa a cirurgias como a ponte de safena. Acessando o sistema circulatório pela virilha, o médico introduziu um catéter com um balão, liberado e implantado na região comprometida a fim de evitar um infarto. Inaugurava-se, assim, a era da angioplastia, um caminho sem volta na medicina, que viria a imprimir segurança e agilidade na reabertura das trilhas fechadas nas artérias e daria um salto nos anos 1980 com a criação dos stents, os dispositivos milimétricos que mantêm o tráfego liberado para o coração. Agora, a chamada cardiologia intervencionista ingressa em um novo momento, com a introdução de algoritmos treinados para planejar e guiar com precisão esses procedimentos cada vez mais populares.
Quem deu um passo à frente nessa história foi o Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, centro de referência que é o primeiro da América Latina a utilizar a inteligência artificial na angioplastia. A tecnologia usada pela instituição integra uma cooperação internacional e se destaca por oferecer camadas profundas de detalhes das artérias que auxiliam a tomada de decisão dos médicos. Por meio de dados captados por um catéter dotado de infravermelho e conectado a um exame de tomografia, a equipe consegue ter à mão informações impossíveis de se obter com o cateterismo tradicional, como a quantidade de cálcio na artéria ocluída. Além disso, o software consegue medir com acurácia o diâmetro do vaso impactado, aprimorando a escolha e a instalação do stent. “O sistema nos ajuda a avaliar todo o resultado, observar a expansão da artéria e se as hastes do stent estão bem posicionadas”, diz Alexandre Abizaid, diretor de cardiologia intervencionista do InCor.
Trata-se de um novo capítulo numa jornada de prevenção, diagnóstico e tratamento diante da maior causa de morte no planeta. Hoje, a angioplastia é considerada o padrão-ouro na desobstrução das artérias coronárias, aquelas que irrigam o coração, salvando milhões de vidas por ano. A guerra, porém, não dá trégua. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os problemas cardiovasculares são responsáveis por cerca de 17,9 milhões de óbitos todo ano. Nos Estados Unidos, uma pessoa infarta a cada 40 segundos. No Brasil, são 400 000 mortes por ano. Para evitar desfechos tão trágicos, os médicos lançam mão de medicamentos que controlam fatores de risco como hipertensão e colesterol alto, procedimentos minimamente invasivos e cirurgias, a depender do grau de comprometimento e complexidade. “Antes do advento do stent, a única opção era fazer uma ponte de safena ou mamária, com um tempo de recuperação de sete a dez dias e taxas de morbidade mais altas”, afirma Weimar Barroso de Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
O avanço na angioplastia, que já permite que pacientes sejam tratados e recebam alta do hospital no mesmo dia, foi acompanhado de uma evolução nas técnicas, materiais, calibres e comprimentos dos stents, cada vez mais aptos a evitar o reentupimento do vaso e a liberar o sangue represado em situações de emergência. Nos anos 2000, a inovação se deu com dispositivos revestidos de medicamentos, hábeis na contenção da inflamação e do estreitamento local. Amparada em tecnologia e avalizada por dezenas de estudos, a angioplastia se tornou, assim, a primeira opção de tratamento a pacientes com doença coronária instaurada, resolvendo 80% dos casos. “Na última década chegamos ao estado da arte dos stents e, agora, estamos refinando processos com métodos auxiliares”, afirma Abizaid.
No entanto, nenhuma inovação, sozinha, poderá deter as condições que financiam os ataques cardíacos, como obesidade, diabetes e pressão alta. “Nossa maior arma deveria ser a prevenção, até porque sabemos que 50% das pessoas infartadas morrem antes de chegar ao hospital”, diz o cardiologista Roberto Kalil Filho, presidente do InCor. A medicina está fazendo sua parte. Cabe à sociedade se conscientizar e se engajar no autocuidado.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905