Não se trata, evidentemente, de cobrir com uma máscara, como se fosse inexistente, o coronavírus, um problema de saúde pública que, até a quinta-feira 5, já tinha provocado a morte de 3 281 pessoas, majoritariamente na China e sobretudo de pessoas com mais de 70 anos, e mais de 95 000 diagnósticos mundiais confirmados, oito deles no Brasil. Não é o caso, naturalmente, de minimizar as 107 mortes na Itália, atalho para o esvaziamento de cidades e interrupção das aulas. E, no entanto, a epidemia, para muito além de seu poder virótico — cada pessoa infectada pode contaminar mais de três, com uma taxa de mortalidade de 3,4% —, esconde outro embaraço, global e assustador: a velocidade com que se dissemina o pânico, banhado em mentiras e estultices. O vírus da desinformação é mais forte que o vírus bioquímico. Na política, o mal tem nome — fake news — e se alastrou como ferramenta para vencer eleições, dizimar inimigos, tomar o errado como certo, nos moldes do que Donald Trump alimentou durante a campanha presidencial de 2016 e nunca mais largou mão. Agora, com a lorota infeccionando o mais decisivo capítulo de qualquer sociedade, o da sanidade de seus cidadãos, dá-se a tempestade perfeita e preocupante.
Nunca antes uma expressão nascida da ciência e adotada pelas novas tecnologias — a “viralização” — ganhou tanta clareza. “Viralizamos” virtualmente, por meio das redes sociais, uma coleção de lorotas em torno de um vírus real (veja três exemplos na pág. 60). Não por acaso, já em 1992, uma capa de VEJA destinada a tratar de uma estúpida onda de balelas estampou a seguinte chamada: “O vírus da fofoca e da maldade contamina o país”. O que assustava, naquele momento, era o boato, entre outros, de que a atriz Claudia Raia tinha aids — pressionada, ela convocou uma entrevista para negar a informação e mostrar o teste negativo para o HIV.
“Saí de Itanhaém e vim morar em São Paulo poucos meses antes de o primeiro caso de coronavírus ser confirmado no Brasil. Quando veio a notícia do diagnóstico, e ainda por cima no bairro em que eu moro, fiquei muito preocupada. Desde então, não saio de casa sem máscara. No início, me olhavam com estranhamento, mas já virou hábito na cidade.”
Os tempos mudaram, e para pior. O que antes ia de boca em boca, em processo lento e gradual, ainda que inevitável e ardiloso, atualmente corre em postagens no Twitter, em telas no Instagram e em comentários no Facebook — além da circulação desenfreada de falsidades pelo WhatsApp. Grassa por aí, como doença sem remédio, a notícia atribuída a espertalhões da Rússia de que o coronavírus foi uma criação americana para derrubar a arqui-inimiga economia chinesa. Outro rumor informa que tudo começou como desvio inesperado do desenvolvimento de armas químicas pelo governo da China. No Brasil, bobocas que se apresentam como “guardiões do Bolsonaro” saíram dizendo pela internet, avidamente, que “essa manifestação do dia 15 foi pensada nos porões da esquerda para disseminar o coronavírus entre os apoiadores do presidente, pois ela vai acontecer bem no auge da propagação do vírus”. Não, não e não.
Toda pessoa de bom-senso há de notar, rapidamente, as bizarrices dessa coletânea de informações tortas, claramente inverossímeis. Mas existe algo pérfido, e que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) batizou de “infodemia”, a mistura irresponsável e calculada de dados reais, concretos e apuráveis, amparados em pesquisas, com exageros criminosos. O medo — e o medo de adoecer talvez seja o mais humano de todos — é um caldo de cultura para a expansão de teorias conspiratórias. Um estudo de 2018 do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) descobriu que “as notícias falsas se propagam mais rapidamente no Twitter que as reais”. A razão, informam os pesquisadores, é que as fabulações inspiram sentimentos fortes como surpresa, pavor e nojo — atraentes e curiosos demais para ser negligenciados. Para os especialistas da OMS, há um ponto de especial preocupação: a proliferação de falsas curas e tratamentos para o coronavírus pode agravar o impacto do surto. De acordo com o Ministério da Saúde, de 8 000 mensagens recebidas pelo canal de combate às fake news do órgão até agora, 90% se relacionavam ao novo coronavírus — 85% eram contrafações. As barbaridades variam desde o consumo de chás e de vitaminas para matar o vírus até números falsos sobre as mortes provocadas. Uma das invencionices, que pregou a substituição do álcool em gel por vinagre como prevenção da doença, fez o Conselho Federal de Química publicar uma extensa explicação desmentindo a afirmação. No Google, para quem digita “coronavírus”, em qualquer idioma, a primeira entrada é exclusivamente de sites confiáveis, com informações oficiais, sobejamente comprovadas.
“O coronavírus me deixou um pouco neurótica. Sabe-se muito pouco dele ainda, e não há remédio. Lavo as mãos toda hora, especialmente depois de tocar algum objeto fora de casa. Evito totalmente aglomerações. Não fui ao Carnaval, uma festa que adoro. Eu me preocupo até em ir ao supermercado. A gente não sabe se a pessoa ao lado esteve em algum país de risco.”
As respostas foram medidas urgentes e necessárias, como mostram experiências anteriores. Ao longo dos últimos dez anos, o economista Bhaskar Chakravorti, da Universidade Tufts, dos Estados Unidos, acompanhou o efeito das tecnologias digitais para a saúde do planeta e o desenvolvimento econômico. “Recorrer a terapias inventadas, em vez de seguir conselhos de fontes confiáveis, como o de simplesmente lavar as mãos com água e sabão, pode fazer com que a doença viaje mais rápido que o normal”, diz Chakravorti. Os rumores, definitivamente, são destruidores — e nenhum foi mais daninho que o infame artigo do médico charlatão britânico Andrew Wakefield, que em 1998 inventou de encontrar uma conexão entre a vacina tríplice (rubéola, caxumba e sarampo) e o autismo. O absurdo foi denunciado e Wakefield, proibido de usar seu diploma. E, no entanto, a bobagem se espraiou, maliciosamente.
Para conter contrassensos desse quilate, especialmente depois da eclosão da nova cepa do coronavírus, a OMS criou um grupo de trabalho, o EPI-WIN (acrônimo, em inglês, de WHO Information Network for Epidemics), destinado a frear a engrenagem enganadora. “Confiar em informações erradas é tão perigoso em uma epidemia quanto a doença em si”, diz o infectologista Luiz Fernando Aranha Camargo, do Hospital Albert Einstein, de São Paulo. Há solução? “Precisamos de uma vacina contra a desinformação”, afirma Mike Ryan, chefe dos serviços de emergência da OMS. A desinformação, em seu aspecto mais maligno, pode até provocar mortes. De modo benigno, acelera comportamentos desnecessários.
Em São Paulo, cidade em que foram registrados seis casos brasileiros de coronavírus, colégios de classe alta como o Avenues e o Saint Paul’s sugeriram aos alunos que viajaram para a Itália durante o Carnaval quinze dias de quarentena em casa e exames de laboratório. Muitas empresas ampliaram o trabalho em casa. Prontos-socorros ficaram lotados. Máscaras de cirurgia sumiram das prateleiras. As embalagens de álcool em gel são tratadas como pepitas de ouro. “Há muito exagero, e muitas das medidas são inúteis no intuito de zerar o risco de infecção”, diz David Uip, infectologista convocado pelo governo do Estado de São Paulo para coordenar os movimentos ao redor da epidemia. “Não se contém a propagação de um vírus mandando o funcionário ou o aluno para casa. Ela só seria interrompida evitando-se o contato entre os seres humanos, e isso, obviamente, inexiste.” Parece haver, por ora, um modo de conter o coronavírus — atacando um bichinho danado, eletrônico, insidioso, que se espalha prioritariamente por smartphones.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677