Apenas na terça-feira 14, quase dois meses depois do primeiro diagnóstico de Covid-19 no Brasil, os números de pacientes recuperados da doença foram finalmente calculados — e divulgados pelo Ministério da Saúde. A taxa estimada de curados representa 50% dos infectados, porcentual superior aos índices globais. Muito em breve ela deverá cair, ressalve-se, já que o país não atingiu o pico da epidemia e, consequentemente, não esgotou os recursos do sistema de saúde, público ou privado. A revelação estatística de curados, para além de representar algum conforto, e muita esperança, é também uma estrada para desenhar com mais precisão a evolução de uma enfermidade ainda desconhecida. Trata-se, enfim, de contribuição para a ciência. Diz Fernando Gatti, infectologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo: “Na falta de pesquisas consolidadas, como é o caso agora, os curados são peça-chave para entendermos a ação do vírus no organismo e desenvolvermos mais rapidamente tratamentos eficazes”.
Aos 57 anos, a corretora de imóveis Celina Freire não pertence ao grupo de maior risco, o de idosos. Absolutamente saudável, nunca tinha sido internada, tampouco tido sequer uma gripe na vida, até ser diagnosticada com Covid-19. Os primeiros sintomas da doença não passaram de cansaço e dor nos olhos. O avanço do microrganismo, no entanto, foi espantoso. Quatro dias depois do teste positivo, ela foi internada na UTI do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, com a sensação de ter um peso em cima do peito e muita dificuldade para respirar. Era uma pneumonia nos dois pulmões. “Lembro que estava no quinto dia de internação e já não suportava ficar sem lavar o cabelo”, conta, com alívio. “Pedi às enfermeiras que me dessem um banho comum. Fui levada por elas e quase não me movimentei. Mesmo assim, quando voltei para a cama, estava tão sem fôlego que parecia ter corrido uma maratona.” Depois de uma semana de UTI e mais sete no quarto do hospital, Celina estava firme e forte, sã.
Os estudos com pessoas que reagiram à Covid-19, como a brasileira Celina, permitiram a descoberta, há menos de um mês, dos mecanismos do sistema imunológico no combate à infecção pelo novo coronavírus. A pesquisa, publicada na Nature Medicine, é resultado das reações de uma mulher de 47 anos de Wuhan, na China. Três dias antes da melhora, anticorpos específicos semelhantes aos do vírus da influenza, apareceram em seu corpo. A descoberta é um passo decisivo para encurtar o desenvolvimento de vacinas.
Enquanto não chega um imunizante ou um remédio eficaz, os cuidados com a doença têm incluído sobretudo três tipos de medicamento — anti-inflamatórios, anticoagulantes e a cloroquina, composto usado como moeda pelo governo federal brasileiro. Indicada originalmente para malária, ela age tanto na entrada do vírus nas células como em sua multiplicação dentro delas. A substância, no entanto, tem efeitos colaterais drásticos, como problemas visuais e arritmia cardíaca, sintomas que podem ser controlados com assistência médica. Pesquisa conduzida pela Fiocruz, contudo, começa a mostrar que a taxa de morte de doentes graves com Covid-19 tratados com cloroquina é equivalente à de pacientes também infectados que não usaram a droga.
Não há, evidentemente, mágica. O que vale é a observação clínica, o comportamento do organismo de quem foi à sombra e voltou. Desde casos graves, que exigem internação, até os mais controlados. O empresário do mercado financeiro Christian Bojlesen, de 45 anos, foi infectado durante as férias em Andorra, no início de março. Ele antecipou a volta ao Brasil quando desconfiou estar doente: de uma hora para outra teve febre baixa, cansaço e um pouco de dificuldade para respirar. Os sintomas nunca passaram disso. Bojlesen ficou isolado em casa por duas semanas, sem precisar de medicação. Recuperado, candidatou-se como voluntário de um estudo promissor com um tratamento baseado na transfusão do plasma do sangue de pessoas curadas para casos preocupantes da doença.
O trabalho, conduzido pelo Hospital Albert Einstein, Sírio-Libanês e Hospital das Clínicas, começou há uma semana. O plasma é a parte incolor e líquida do sangue, composta de água, proteínas e anticorpos criados no contato com diversos vírus. Seu uso não é novo na história da medicina. A estratégia já foi empregada durante a pandemia de gripe espanhola, em 1918, e de Sars, em 2003. Dados de uma pesquisa publicada no periódico científico JAMA são animadores. Das cinco pessoas que estavam ligadas a respiradores e receberam a transfusão, três tiveram alta e duas permaneceram estáveis.
No universo de recuperados da Covid-19 (são mais de 500 000 no mundo), há uma indagação crucial ainda sem resposta definitiva da ciência: esses pacientes estão de fato imunes? Recentemente, as autoridades sul-coreanas anunciaram 116 registros de pessoas que testaram positivo para o vírus novamente. Os casos estão sendo analisados pela OMS. Há nuances. O resultado nos exames positivos pode ser tanto em razão de uma nova infecção como de fragmentos que restam nas células mesmo depois da morte do vírus, o que não seria suficiente para causar a doença. Um segundo estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade de Fudan, em Xangai, foi além: após serem avaliadas 130 pessoas recuperadas da doença, constatou-se que cerca de 8% delas não haviam criado defesas contra um novo contágio. Ou seja, era como se não tivessem se infectado e corriam risco semelhante ao de pessoas que não adoeceram.
Há ainda muitas dúvidas, e seria irresponsabilidade buscar atalhos inexistentes. Mas histórias de reviravolta devem ser celebradas por iluminar possibilidades, sinônimo de chances de vida diante de tanta incerteza. Convém acompanhar a trajetória de Gina dal Coletto, de Santos, no litoral de São Paulo. Aos 97 anos, ela se livrou da Covid-19 depois de ficar onze dias na UTI do Hospital Vila Nova Star, em São Paulo. Gina foi infectada pela filha, Maria Helena, que a visitou sem saber que estava doente. Ela foi tratada desde o início com anti-inflamatórios e antibióticos, mas teve um salto apenas no terceiro dia, quando passou a contar com a companhia de Maria Helena no quarto do hospital. Os médicos liberaram sua permanência pelo fato de ela ter sido infectada anteriormente — e já estar curada. Diz a senhora, um sorriso no rosto: “Recuperei a vontade de viver só de ter minha filha por perto”.
Com reportagem de Mariana Rosário
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683