Depois de dois anos de medo e tristeza, de quarentenas e confinamentos, há ótimos e luminosos motivos para alívio. Na terça-feira 15, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou pela segunda vez neste ano uma queda no número de novos casos de Covid-19 no mundo. No período de 7 e 13 de fevereiro, houve uma redução de 19% em comparação ao total registrado nos sete dias passados. No sul da Ásia, o decréscimo foi de 37%; nas Américas, 32%; na África, 30%; na Europa, 16%; e no leste do Mediterrâneo, 12%. No boletim anterior, a organização contabilizara diminuição de 17% no número de novos infectados. No Brasil, a semana também foi de boas notícias. Também na terça 15, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou que, pela primeira vez em 2022, a taxa de ocupação dos leitos de UTI destinados a pacientes adultos com Covid-19 apontou melhora nos índices. Das nove unidades federativas que na semana passada estavam com nível de ocupação igual ou superior a 80%, considerado crítico, apenas quatro permaneciam nesse patamar. Um dia antes, a média móvel de novos casos registrou a maior queda em um mês e meio, cravando quatro dias seguidos de declínio.
Os indicadores demonstram que a ômicron, a mais transmissível das variantes do coronavírus, está perdendo fôlego depois de assustar o planeta de novembro de 2021 até agora, fazendo explodir o total de novas infecções. Uma boa medida da desaceleração é o decréscimo no Brasil nos índices de transmissibilidade do vírus. A taxa é o termômetro que afere a velocidade de propagação da doença. No dia 25 de janeiro deste ano, ela estava em 1,78, segundo o Imperial College of London. Isso significava dizer que, naquele momento, 100 pessoas infectadas poderiam contaminar outras 178. Seis dias depois, o índice caiu para 1,69 e na quarta-feira 16 marcava 1,22. Ainda é alto, convém prestar atenção — o ideal é que fique abaixo de 1 —, mas a tendência é claramente de redução no ritmo de transmissão. Dados do Instituto Todos pela Saúde revelaram, ainda, que o volume de testes positivos para Covid-19 caiu de 67% para 51% entre os dias 22 de janeiro e 12 fevereiro.
É a primeira vez, desde março de 2020, quando a OMS decretou a pandemia, que o mundo vive um período aparentemente mais calmo e de futuro inexorável. Houve outros momentos de esperança, encerrados pelo surgimento de variantes mais agressivas. Agora, tudo indica, é diferente. Como mostra a história de outras pandemias, há um momento na trajetória dessas crises sanitárias afeito a indicar um ponto de inflexão a caminho do fim. É o que parece estarmos vivendo neste começo de 2022. “Este contexto, que até agora não havíamos visto nesta pandemia, nos dá a possibilidade de um longo período de tranquilidade”, afirmou Hans Kluge, diretor da OMS para a Europa, no início do mês. “É uma trégua que pode trazer uma paz duradoura”, acrescentou o médico belga. Em outras palavras, a situação atual permite afirmar que a pandemia está no início do fim.
É sempre difícil fazer previsões de qualquer ordem, sobretudo em relação a questões de saúde pública. Mesmo as realizadas por sistemas de inteligência artificial, muito mais precisas do que as feitas pelos homens, estão sujeitas ao imponderável e à natureza do ser humano. Portanto, é bom ter em mente que o mundo não está completamente livre de ser novamente surpreendido por um acontecimento inesperado, mas é improvável que aconteça. Há conforto, agora, porque autoridades de saúde como Kluge e centenas de outros cientistas trabalham com uma equação matemática confiável. Os dados à mão apontam para uma série de avanços que, até muito recentemente, era apenas quimera. A pandemia mudou, sim, de ritmo.
Pelo menos três condições são indispensáveis para o término de catástrofes provocadas por vírus: a existência de vacinas, a transformação natural do agente causador em direção a versões menos letais e a grande quantidade de pessoas naturalmente imunizadas, por terem contraído a doença. O mundo dispõe hoje das três premissas. A ômicron, reafirme-se, é mais contagiosa, mas menos agressiva. As derivações do vírus que provocou a primeira onda, em 2020, até a variante hoje prevalente, mais amena, fazem parte do processo de seleção natural. “Vírus precisam de um hospedeiro para replicar seu material genético, não querem matar”, explica o infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria. Logo, prevalecem as cepas com alto poder de infecção, porém com baixa capacidade de provocar doenças graves e mortes. Esse mesmo poder de transmissibilidade expandiu o total de pessoas expostas, o que aumentou a parcela de indivíduos que naturalmente produziram anticorpos contra o SARS-CoV-2. “O nível de infecções sem precedentes sugere que mais da metade da população mundial terá sido contaminada pela ômicron entre novembro de 2021 e março de 2022”, escreveu em artigo publicado há um mês na revista The Lancet o médico Christopher Murray, especialista em métricas da saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos.
Convém, contudo, louvar com estridência, à guisa de mantra, a relevância das vacinas. Sem imunizantes, estaríamos muito longe de enxergar qualquer possibilidade de fim. Eles ampliam a porcentagem da população protegida, circunstância que por si só reduz a possibilidade de surgimento de cepas, e, acima de tudo, salvam vidas, como prova a ciência repetidamente. Embora muitos ainda insistam em maldizê-las — recentemente, grupos antivacina novamente protagonizaram um ato de suprema ignorância ao atacarem o infectologista americano Anthony Fauci, defensor de primeira hora das doses nos braços, comparando-o a Adolf Hitler —, as vacinas são responsáveis pela virada contra o coronavírus. No Brasil, um levantamento do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, de São Paulo, não deixa margem a dúvidas. Nos últimos três meses, 82% das mortes por Covid-19 foram registradas em pessoas não vacinadas ou que não haviam completado o ciclo de imunização. Porcentual semelhante se repete mundo afora. A análise dos índices nacionais também deixa clara a queda na trajetória de óbitos com a subida da vacinação. Em 1º de junho de 2021, o país tinha 22,4 milhões de vacinados e a média móvel de mortes era de 1 881 por dia. Em 1º de janeiro deste ano, quando o número de imunizados atingiu 138,5 milhões, o índice caiu para média de 97. O início da vacinação infantil no país melhora o panorama — um mérito, ressalte-se, da população e do SUS, que seguem a imunização a despeito da irresponsabilidade do governo do presidente Jair Bolsonaro, que tudo faz para atrapalhar as campanhas.
A reunião das três circunstâncias — vacinas, vírus menos letal e grande número de pessoas imunizadas — cria o que estudiosos da Fiocruz consideram uma “janela de oportunidade”. Para os especialistas, o cenário atual poderia promover inclusive um bloqueio temporário de transmissão do vírus no país. Margareth Portela, cientista da instituição, entende que a mudança do status do vírus de pandêmico para endêmico — permanece em circulação, mas sem causar perturbações nas atividades — não demora. “Deve ocorrer dentro de alguns meses”, diz, ressaltando que se trata de um prognóstico, não de uma certeza. O americano Christopher Murray, ao contrário, foi categórico em seu artigo na The Lancet. Ele escreveu: “A Covid-19 se tornará outra doença recorrente com a qual as sociedades terão de lidar (…) A era de medidas extraordinárias tomadas para controlar a transmissão do SARS-CoV-2 vai acabar. Depois da onda ômicron, a Covid-19 vai retornar, mas a pandemia não”.
Ancorados nessas evidências, muitos países e cidades começaram a levantar as restrições mais severas. Em Nova York, por exemplo, não é preciso mais usar máscara em locais abertos ou mesmo fechados. A Europa segue o movimento, animando moradores e visitantes, dando fôlego a uma economia que dá sinais de recuperação. Segundo informe da União Europeia, a taxa de emprego entre os países-membros atingiu os níveis pré-pandêmicos. No Reino Unido, desde 9 de janeiro caiu a exigência de máscara em lugares públicos, de limitação de público em bares e restaurantes e de apresentação de certificado de vacina. Até o fim de fevereiro, a última limitação — isolamento de quem testar positivo — deve caducar.
Na Itália, quem tomou a terceira dose ou tem esquema vacinal completo não precisa tirar nem apresentar passaporte sanitário, e o uso de máscara ao ar livre tornou-se facultativo. Baladas estão abertas e a partir de 1º de março eventos esportivos poderão contar com 75% de público. Na França, a partir de 28 deste mês o uso de máscara não será obrigatório em lugares fechados, exceto no transporte público e em locais que exigem o passaporte vacinal. A utilização ao ar livre deixará de ser obrigatória no início de março. Mesmo atravessando um pico de casos, a Dinamarca liberou tudo. “Damos adeus às restrições e dizemos alô para a vida que conhecíamos antes do coronavírus”, celebrou a primeira-ministra Mette Frederiksen. No país escandinavo, o volume de internações é administrável, a taxa de letalidade não passa de 0,22% e 85% da população está plenamente vacinada. O Brasil ainda não tem todas essas características, mas caminha para isso. A cobertura vacinal contra a Covid-19 hoje é de mais de 71% da população, um aspecto sobejamente positivo.
Depois de tanto tempo, a volta à vida como era antes ainda produz alguma ansiedade. “Acho arriscado essa de já não ter restrição e voltarmos ao modo como se vivia em 2019”, diz Vitor Mori, pesquisador na Universidade de Vermont, nos Estados Unidos, e membro do Observatório Covid-19 BR, que reúne especialistas voluntários para monitorar o surto. De fato, o momento pede alguma cautela para que a transição da pandemia para a endemia se dê de forma consistente, até para não corrermos o risco de voltar três casas nesse jogo nada divertido. Mas o caminho parece ser inexorável. Depois de dois anos, os sinais de uma melhora global estão finalmente no horizonte. A tragédia que marcou nossa geração, matando mais de 5,8 milhões de pessoas, acabará. Mas será muito importante lembrar para sempre como isso aconteceu: graças à ciência, com destaque para a vacina, e a todos aqueles que a defenderam.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777