Cresce uso de cigarro eletrônico por jovens, embora a venda seja proibida
Influenciadores brasileiros disseminam nas redes os atrativos do produto
Custou, mas o cigarro saiu de moda. Soterrado por uma avalanche de evidências científicas de seus malefícios para a saúde, capazes de causar 7 milhões de mortes por ano, o produto deixou de ser símbolo de poder, liberdade e glamour, parou de aparecer pendurado na boca de celebridades e foi caindo em desuso no mundo todo — de 1990 para cá, o número de fumantes no Brasil teve queda de mais de 50%. Eis que agora surge das cinzas o vape, cigarro eletrônico de aparência moderninha e sabores atraentes que influenciadores digitais brasileiros divulgam, entre baforadas, como sendo acessório essencial para descolados dignos do nome. Dispositivos eletrônicos com nicotina não são novidade. O que chama a atenção agora é a sutil disseminação entre os jovens, impulsionada nas redes sociais, atropelando dois fatos tão inescapáveis quanto ignorados: 1) o fumo através de e-cigarettes é tão danoso quanto o cigarro convencional; e 2) a venda deles é proibida no país.
Basta entrar no Instagram para dar de cara com influenciadores jovens e bonitos desfrutando de vaporizadores sabor uva, manga, morango, abacaxi, banana e outras combinações, que ganham e divulgam como se fizessem parte de seu invejado dia a dia. A influenciadora Vitória Gimenez, 25 anos, embaixadora de um dos maiores perfis de venda de pods (a versão mais barata e descartável dos vapes) no Brasil, afirma que conheceu o produto — e gostou — em uma viagem aos Estados Unidos. “O vape é muito mais prático e bonito que o cigarro tradicional. Como não tem cheiro, posso usar em qualquer lugar”, diz. Vitória, que tem mais de 200 000 seguidores no Instagram, apregoa que os cigarros eletrônicos fazem menos mal que os convencionais — o que não tem confirmação científica. “Não há forma segura ou menos pior de tabagismo. Além da nicotina, que todos sabemos que causa câncer, os dispositivos eletrônicos liberam uma série de substâncias tóxicas”, alerta Elie Fiss, professor de pneumologia da Faculdade de Medicina do ABC.
Os cigarros eletrônicos, inventados na China e até hoje produzidos quase todos lá, estão no mercado há aproximadamente vinte anos e foram lançados como ferramenta menos danosa para ajudar as pessoas a parar de fumar. Apelidados de vape porque a pessoa inala e exala vapor em vez de fumaça, contêm nicotina e outras substâncias cancerígenas. Nos últimos anos, uma nova geração de vapes, com cara de pen drive e fabricados pela Juul Lab, invadiu as escolas dos Estados Unidos e outros países, cultivando um mercado de jovens que nunca haviam fumado — e desvirtuando o propósito original dos e-cigarettes. De tão recorrente, o uso de vape foi qualificado de epidemia nos Estados Unidos em 2019, quando os hospitais reportaram mais de 2 500 internações e cinquenta mortes de usuários em decorrência de problemas pulmonares. Para piorar, um estudo conjunto das universidades da Califórnia e de Stanford constatou que os usuários de dispositivos eletrônicos têm até sete vezes mais chances de contrair Covid-19.
Por sua estratégia de marketing voltada diretamente para adolescentes, a Juul firmou acordo em junho para pagar 40 milhões de dólares, a título de indenização por despesas causadas, à Carolina do Norte — o 15º estado americano a mover ação do gênero contra a empresa. Também admitiu que o dispositivo é altamente viciante e comprometeu-se a tomar providência para coibir seu uso entre os jovens. A essa altura, já tinha diversos concorrentes na comercialização de pods — a versão descartável que contém baforadas (puffs) equivalentes a um maço de cigarro —, que agora circulam no mundo maravilhoso dos influenciadores digitais brasileiros. “Trata-se de um público especialmente atraído por atitudes transgressoras. Além disso, a fumaça que sai dos vaporizadores tem o apelo estético perfeito para ganhar likes nas redes sociais”, aponta Maria Isabel de Almeida, professora de sociologia da PUC-Rio. No Instagram, 30,7 milhões de publicações utilizam a hashtag #vape.
No movimentado universo das blogueiras digitais, o vape é tratado com a mesma naturalidade que uma bolsa ou um item de maquiagem e faz parte integral da narrativa de vidas perfeitas, embaladas por viagens, passeios de barco e festas de alto nível. Para Monica Andreis, psicóloga e vice-diretora da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT), a estratégia de sedução, ainda que repaginada, é a mesma da época de ouro dos cigarros tradicionais, personificada no caubói dos anúncios da Marlboro e atrelada ao fascínio de artistas que iam do bad boy James Dean à requintada personagem de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo. “Os jovens são atraídos pelo ar descolado e acreditam que são capazes de dominar o hábito”, diz Monica. A influencer mineira Julia Nickel, 25 anos, 27 600 seguidores, trocou o cigarro convencional pelo digital conquistada pelos sabores e aromas, mas admite: “Quando uso, fico com voz rouca e tossindo”. O Instagram, onde se concentram os anúncios e vendas do produto, afirmou em nota que “trabalha para remover o máximo possível desse tipo de conteúdo antes que as pessoas o vejam”.
O Brasil proíbe a venda, a importação e a propaganda de todos os dispositivos eletrônicos destinados ao fumo com base em uma resolução, o que abre a possibilidade de que os e-cigarettes venham a ser legalizados no futuro. “O consumo em si não é vedado. Os alvos da norma são o comerciante e o importador”, afirma a advogada Raphaela Silveira. Adquirir um pod é rápido e indolor: basta entrar no perfil do Instagram de alguma marca popular (existem várias, repisadas a todo instante por influenciadores) e clicar em um link que direciona o interessado para uma conversa no WhatsApp. Lá são combinados o sabor, a forma de pagamento de cerca de 50 reais — transferência bancária ou dinheiro — e a retirada, pessoalmente em algum endereço pré-selecionado, ou entrega por aplicativo de transporte. A reportagem de VEJA seguiu o passo a passo e recebeu seu pod em meia hora, sem apresentar nenhum tipo de identificação, como nome ou idade. O vaporizador chega em uma embalagem parecida com as usadas em delivery de restaurante. Dentro dela encontra-se uma pequena caixinha colorida, chamativa, com cheiro forte de fruta e rótulo em inglês. Basta abrir, pegar o dispositivo em seu interior, levar à boca e tragar — simples assim.
Na contramão do modismo, o empresário e influencer Tallis Gomes, 34 anos, relata que chegou a fazer uso dos vaporizadores, mas parou ao tomar consciência dos danos causados. “Eu tinha uma sensação de relaxamento, mas o prazer momentâneo não vale as consequências graves no futuro”, afirma. Gomes, que tem quase 400 000 seguidores, conta que foi instigado a experimentar o e-cigarette para se sentir incluído em ambientes onde a maioria das pessoas usa. “O vape virou um código cultural, um objeto de ostentação”, ressalta. As consequências são imediatas: quem entra em contato com o cigarro eletrônico tem pelo menos três vezes mais chance de buscar outros produtos com nicotina. “Levamos tanto tempo para controlar o tabagismo no Brasil e agora presenciamos um retrocesso imensurável”, indigna-se Liz Almeida, coordenadora de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Rio de Janeiro. Apoiado na batida tática de adicionar charme ao que não tem graça nenhuma, o cigarro em roupagem futurista dá sopro a um problema do século passado.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746