Em tese, todo pai quer o melhor para seu filho. Os problemas começam quando esta saudabilíssima ambição se torna um instrumento de controle ditatorial da vida das crianças, em que sua autonomia — sim, elas têm vontades próprias, que precisam ser ouvidas — acaba sendo sumariamente suprimida para dar espaço àquilo que os pais julgam ser o melhor caminho. Quando o autoritarismo extremado ocorre repetidamente e por muitos anos, as consequências podem ser graves. Uma pesquisa de médicos canadenses publicada agora pela Universidade de Cambridge mostra que adolescentes criados por pais rígidos — e rigidez, aí, não significa necessariamente abusos físicos — apresentam redução significativa em duas estruturas cerebrais fundamentais para a regulação das emoções, o córtex pré-frontal e a amígdala cerebelosa, e esse efeito os deixa mais propensos a desenvolver transtornos da mente. “A longo prazo, a recorrência do chamado stress tóxico na fase mais vulnerável do crescimento pode levar ao aumento de problemas de relacionamento, baixa autoestima e, em situações extremas, até dependência química”, alerta a neuropediatra Liubiana Arantes de Araújo, presidente do departamento de desenvolvimento da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Na psicologia, educação autoritária é aquela caracterizada por comportamentos excessivamente controladores, à base de grito, diálogos agressivos e repressão das emoções. A locutora Ida Nuñez, 65 anos, recorre à terapia há quase quarenta anos para lidar com as marcas de sua infância e adolescência, quando a mãe, por quem foi criada, tinha a incontestável última palavra sobre tudo dentro de casa. Aos 19 anos, sem estrutura financeira e psicológica, Ida se casou para se libertar — e entrou em mais um relacionamento abusivo. “Estou divorciada, mas percebo que sempre me envolvi com pessoas parecidas com a minha mãe. Isso é reflexo da minha criação, porque aprendi a associar amor e cuidado a controle”, explica. Famosos de personalidades tão díspares quanto o escritor Franz Kafka e o cantor Michael Jackson (veja abaixo) relataram seu sofrimento nas mãos de pais ultraexigentes e empenhados em desmerecê-los e puni-los. Esse tratamento não impediu que seu talento artístico viesse a se manifestar, mas os transformou em adultos mais infelizes e inseguros.
As pesquisas mostram que adolescentes criados sob regras rígidas e inflexíveis costumam ser introspectivos e ter mais dificuldade de se relacionar socialmente. Em muitos casos, adotam uma vida dupla: em casa, obedecem aos pais sem discutir, mas da porta para fora fazem tudo o que eles jamais permitiram. O carioca Nikholas Antunes, de 19 anos, conta que, revoltado com as leis paternas que o impediam de se encontrar com os amigos e de jogar videogame, entre outros vetos, começou a consumir bebidas alcoólicas aos 15 anos e chegou a adotar comportamentos de risco. “Ele queria impor o estilo de vida dele, não tinha conversa. Quando cheguei à adolescência, fazia tudo escondido. Foi uma válvula de escape na época, mas hoje vejo como me coloquei em perigo”, diz Antunes, que não mora mais com os pais. A terapeuta familiar Ana Cristina Fróes explica que, se o filho não encontra nos pais um porto seguro, é natural que ele comece a mentir e omitir para evitar conflitos. “Querer mandar em escolhas de amizade, profissionais e amorosas configura abuso psicológico. É uma forma de negar os desejos dos filhos e maltratar suas decisões”, afirma.
Não são só os pais autoritários que marcam de forma negativa a vida adulta dos filhos — os permissivos, que dizem sim a tudo, e os negligentes, que não lhes dão a atenção devida, também não contribuem para que se ergam bons pilares emocionais. Na criação da prole, a psicologia recomenda o que chama de modelo democrático, também chamado de autoridade afetiva, o único que estimula um desenvolvimento positivo. O princípio é o estabelecimento de regras e limites aliado à comunicação e ao afeto. Para o psiquiatra Lino de Macedo, do comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância, não se trata de fazer todas as vontades dos filhos, mas de estar disposto a explicar as negativas e praticar o diálogo. “Se a criança recebe estímulos neurológicos que suscitam o medo, a ameaça, a dor, ela tende a não ter um amadurecimento saudável”, adverte Macedo. A pedagoga Larissa Mendes, 25 anos, teve uma infância turbulenta, repleta de sermões e castigos sem nem sequer entender o motivo. “Meus pais queriam impor respeito pelo medo e eu acatava para evitar uma reação agressiva. Eles não me viam como um ser humano completo e diferente deles, que tinha opiniões próprias”, relembra. Hoje mãe de Ravi, de 4 anos, ela faz tudo ao contrário: preza as manifestações de afeto e acha bom vê-lo questionar suas regras. Ter autoridade sem ser autoritário — esta é a linha fina a ser entendida e decorada no manual de criação de filhos.
Fama misturada com angústia
Artistas e intelectuais criados por pais excessivamente autoritários, que depreciavam suas habilidades, falaram de seu sofrimento em cartas e entrevistas. Alguns deles:
Vincent Van Gogh (1853-1890)
O pintor penou com a falta de afeto e aceitação dos pais, que não valorizavam seu talento e chegaram a jogar alguns desenhos seus no lixo.
Franz Kafka (1883-1924)
A Hermann, descrito como um tirano em casa, autoritário, dominador e mestre em despertar medo, o escritor dedicou Carta ao Pai
Michael Jackson (1958-2009)
O filho mais famoso de Joe Jackson foi alvo de cobranças excessivas, xingamentos e bullying. Adulto, ele rompeu relações com o pai
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737