É fato que o negacionismo e as fake news, que ganharam força nos últimos anos, estão entre os principais motivos para a baixa cobertura vacinal de crianças no Brasil. Potencializada pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, durante a pandemia da Covid-19, a desinformação se disseminou de tal forma que levou mães e pais a desconfiarem das vacinas – algo antes cultural no país – e da própria ciência, o que culminou em um problema ainda maior: violar o direito das crianças de receber as vacinas e serem protegidas contra certas doenças, inclusive a Covid-19. Além disso, essa irresponsabilidade de uma parte das autoridades fez regredir progressos que o país já tinha alcançado como a eliminação do sarampo e da pólio, que já eram erradicadas no país.
“Sempre falamos que a vacinação é o maior programa governamental de inclusão social, mas sabemos que não é bem assim. O decréscimo na cobertura vacinal piorou muito nos últimos cinco anos e a pandemia escancarou esse desequilíbrio”, disse Renato Kfouri, infectologista, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), durante evento da Pfizer, realizado na manhã desta quarta-feira 19, no Museu de Arte Moderna, em São Paulo. “Temos que observar que os motivos entre as classes sociais para não vacinar os filhos são diferentes: enquanto as mais favorecidas questionam a confiança e a percepção de risco das vacinas, as menos favorecidas também enfrentam uma série de outros fatores como a falta de tempo e as dificuldades de acesso”, completa o médico.
E é justamente esse quadro de problemas que trata a nova pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva, a pedido da Pfizer: quais são os principais obstáculos à proteção que se acentuam entre os mais vulneráveis, como filhos de negros, de menor renda e que estudam na rede pública, e a percepção da escola como aliada para a imunização de crianças e adolescentes.
Na pesquisa, que ouviu 2 mil mães de crianças e adolescentes com idade até 15 anos, motivos como a falta de tempo, distância entre sua casa e o local da aplicação, perda da carteirinha ou dificuldades para lembrar as datas das doses são reclamados por pelo menos 6 em cada 10 mães brasileiras (66%). “A taxa de vacinação infantil no Brasil vem sofrendo uma queda importante nos últimos anos, deixando a população mais exposta a doenças que antes estavam sob controle, como o sarampo”, disse Adriana Ribeiro, diretora médica da Pfizer, Adriana Ribeiro.
“Sabemos que essa questão foi agravada pela pandemia, mas estamos falando de um problema multifatorial, complexo, influenciado por vários elementos, sejam eles sociais, econômicos, comportamentais ou de informação. Por isso, com a nova pesquisa, propomos um olhar mais aprofundado desse cenário, como forma de contribuir para a busca de soluções que realmente possam transformar a situação”, acrescentou.
Desinformação e Desconfiança
Feito com mães de todas as regiões do país, já que elas são as maiores responsáveis por levar os filhos para vacinar, o levantamento também indica a falta de entendimento do calendário de vacinação infantil: 68% das entrevistadas dizem que já se sentiram confusas sobre a imunização dos filhos. Questionadas sobre as razões que mais atrapalham a vacinação das crianças, 45% das mães falaram sobre a desinformação em relação ao calendário vacinal; 39% apontaram as dificuldades para chegar aos locais de vacinação e a percepção dos horários de funcionamento dos órgãos de saúde; e 17% das participantes declaram sua falta de confiança nas vacinas.
Na prática, 16% das mulheres ouvidas afirmam que não levam seus filhos para tomar todas as vacinas recomendadas para a faixa etária da criança.
Mães Sobrecarregadas
Além das dificuldades de informação sobre as vacinas, a sobrecarga das mães aparece como outra importante circunstância para o problema da baixa vacinação infantil. Na pesquisa, 56% das mães ouvidas relatam que, com as demandas do dia a dia, acabam esquecendo as datas de vacinação dos filhos e 49% declararam ter dificuldades para gerenciar a carteirinha, sendo 59% entre as mães de crianças que estudam em escolas públicas e 66% na região Norte, a mais pobre do país.
Esses números mostram o impacto da desigualdade social para a imunização pediátrica: das 79% das mães que afirmam que gostariam de receber alguma ajuda para lembrar e organizar as datas de vacinação dos seus filhos, 83% são das classes D/E. Mulheres negras, de menor renda ou com filhos estudando em escolas públicas são as mais impactadas: enquanto 35% indicam que já atrasaram a vacinação dos filhos ou deixaram de imunizá-los por residirem longe do local de vacinação, 41% são das classes D/E e 51% da região Norte. Também são as mães nortistas as que mais relatam a experiência de perder um dia de trabalho para poder levar a criança para se vacinar: a maioria delas (51%) já passou por essa situação.
Vale destacar que Norte e Nordeste concentram os municípios com os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo dados oficiais. “Essas também são as regiões do País que apresentam os indicadores mais baixos de imunização infantil. Portanto, é importante considerar o impacto da desigualdade social dentro desse cenário para que possamos buscar soluções que ajudem a transpor cada um dos obstáculos enfrentados pelas famílias na imunização de suas crianças”, afirma Kfouri.
A pesquisa aponta ainda que, com exceção da imunização contra a gripe, para todas as outras vacinas pediátricas, a adesão é maior entre as mulheres com filhos estudando em escolas particulares.
A Escola como Aliada?
Na pesquisa, 88% das mães, ou seja, quase 9 em cada 10 mães acreditam que a escola poderia facilitar o acesso à vacinação infantil. A maioria, 79%, gostaria que a escola ajudasse a lembrar das doses previstas no calendário e 82% disseram que a instituição de ensino poderia enviar mais comunicados sobre o assunto vacinação. “Assim como as escolas ajudam a lembrar de datas importantes que configuram feriados nacionais, por exemplo, poderiam ajudar com essa informação tão relevante do calendário de vacinação infantil”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
De acordo com a pesquisa, para 76% das mães, o ideal seria a possibilidade de vacinar os filhos dentro da própria escola, o que economizaria tempo e dinheiro, além de ser o lugar mais confiável depois da própria casa. Para essas mulheres, isso também seria um benefício coletivo: 85% acreditam que essa alternativa colaboraria para aumentar a cobertura vacinal do país como um todo.
Individualmente, 77% das mães estão convencidas de que não atrasariam as vacinas de seus filhos se fossem dadas nas escolas e 81% dizem que se sentiriam seguras com a imunização no ambiente escolar se soubessem que a aplicação seria realizada por profissionais qualificados. Nesse contexto, quase todas (91%) afirmam que provavelmente autorizariam os filhos a receber as doses na escola, sendo que 73% dizem que a decisão independeria, inclusive, do tipo de vacina ministrada. “Esses resultados mostram a importância de investir em estratégias que facilitem o acesso à vacinação e reduzam as barreiras que muitas vezes impedem que as crianças recebam todas as doses necessárias”, diz Meirelles. “As mães brasileiras acreditam que essa parceria entre escolas e autoridades de saúde pode fazer a diferença na vida de muitas crianças, ajudando a prevenir doenças e promovendo a saúde pública”.
Mas como alerta Renato Kfouri, essa medida não é tão fácil de alcançar, já que nem todas as escolas podem querer assumir essa responsabilidade, sem contar as questões logísticas. “É preciso verba e recursos para aplacar o tamanho do problema que temos”, diz ele, lembrando que, embora a vacinação infantil nas escolas poderia aumentar a cobertura vacinal entre adolescentes, não resolveria o problema para crianças menores de 2 anos, quando é necessária a imunização primária de doenças como a pólio e o sarampo. “Sabemos que não é uma política única porque as crianças costumam começar a frequentar a escola após os 4 anos de idade no Brasil. Essa estratégia de vacinação poderia ser importante do ponto de vista das escolas funcionando como postos de vacinação, o que amenizaria o problema de acessos e a recuperação vacinal. Mas para isso é necessário que se tenha investimento”, finaliza o médico.