Febre oropouche avança no Brasil em sinal de alerta para a saúde pública
Após provocar as primeiras mortes, a doença transmitida por mosquitos leva a uma ampliação do monitoramento dos sistemas de vigilância
Em 2017, o ano em que se encerrava a emergência global pelo vírus zika e seu devastador rastro de 4 595 bebês nascidos com malformação craniana, uma voz se elevou para apontar o risco de outro patógeno propagado por insetos — e até então circunscrito à Região Norte — se disseminar e causar pânico. Em uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o infectologista Luiz Tadeu Moraes Figueiredo, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, cravou: “O oropouche é um vírus que pode emergir a qualquer momento e provocar um sério problema de saúde pública”. Exatos sete anos depois, em meio a um surto de arboviroses encabeçado pela dengue, o Brasil se torna o primeiro país a registrar mortes pela doença e investiga episódios de microcefalia e morte fetal ligados à infecção. São elementos suficientes para que os sistemas de vigilância monitorem, cada vez com mais rigor, a moléstia transmitida por mosquitos que já se alastra por vinte e um estados, somando quase 7 300 casos.
O vírus oropouche é um velho conhecido do território amazônico e de alguns outros locais nas Américas. Descrito em Trinidad e Tobago em 1955, foi detectado no Brasil em uma amostra de uma fêmea de bicho-preguiça resgatada nas obras da rodovia Belém-Brasília em 1960. Desde então, surtos pipocaram de tempos em tempos por países como Equador, Panamá e Peru. “É uma zoonose que vinha se mantendo na natureza, entre os animais silvestres, e os casos humanos eram de pessoas que entravam na mata, mas agora ela se adaptou ao ciclo urbano”, diz Figueiredo. “Já tínhamos observado casos na região do Planalto Central, o que nos dava a ideia de que era uma arbovirose que vinha alargando a sua área de influência.”
Com o maior surto de dengue da história brasileira, com 6,4 milhões de casos e 4 900 mortes, os holofotes se concentravam nas infecções transmitidas pelo Aedes aegypti, o mosquito mais adaptado para levar doenças aos humanos. Ocorre que, na surdina, outra patologia ganhava terreno e escala: uma enfermidade viral que tem como vetor uma pequenina mosca, apelidada de maruim ou mosquito-pólvora. Apesar do aumento na incidência da febre oropouche, a literatura médica pontuava que casos graves eram raros, sendo a complicação mais conhecida a meningite. Mortes não tinham sido notificadas até então. No mês passado, porém, a luz vermelha se acendeu.
O Ministério da Saúde apresentou, em uma nota técnica, os primeiros casos em investigação de microcefalia, aborto espontâneo e morte fetal, trazendo de volta o temor dos impactos do zika para as gestantes e seus bebês. Ao todo, são nove casos de transmissão da mãe para o filho em apuração. Houve reforço na orientação para monitoramento de registros de oropouche em grávidas e recomendação para uso de repelente e roupas que cubram a pele. A Organização Pan-Americana da Saúde também se mobilizou e emitiu um alerta, considerando o fato de Bolívia, Peru, Cuba e Colômbia terem registro da infecção. Na última semana, a preocupação decolou com a confirmação da morte de duas mulheres com menos de 30 anos e sem doenças prévias, no interior da Bahia. Um terceiro óbito é investigado.
As notícias bateram na porta das autoridades sanitárias e suscitaram uma onda de medo. Mas há que ponderar e contextualizar o quadro. “Mortes podem ser registradas quando uma doença tem um número maior de acometimentos por causa das respostas individuais”, afirma o infectologista Jean Gorinchteyn, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Ainda que o oropouche também seja transmitido pelo pernilongo comum (o Culex), não há indícios de que possa ganhar as mesmas proporções da crise do zika. O que não significa que a vigilância e as pesquisas possam dar trégua. “Até porque não se acreditava que ele fosse capaz de matar”, diz Figueiredo.
Nesse sentido, prospera a hipótese de que o vírus se rearranjou geneticamente com outros dois micróbios em circulação na Amazônia, o vírus de Iquitos e o de Perdões, ambos capazes de acometer humanos. “Mas ainda é cedo para afirmar se o oropouche modificado pode levar a sequelas mais complexas”, declarou o biólogo Renato Santana, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que conduziu o estudo junto ao laboratório Hermes Pardini a partir de amostras colhidas em estados afetados. Para evitar que a história se repita como tragédia, a prudência manda ter cautela. Ouvir as vozes da ciência é vital.
Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2024, edição nº 2904