A enfermagem é uma tradição de família. Minha mãe sonhava em seguir a profissão. Ela não pôde, mas eu e minhas irmãs conseguimos. Nascemos em Guaxupé (MG) e viemos estudar em São Paulo. Quando chegávamos à cidade, a primeira coisa que fazíamos era um curso de auxiliar de enfermagem. Concluí essa formação aos 18 anos e, quando comecei a trabalhar na área, dei início à faculdade de enfermagem. Hoje são quase trinta anos de profissão. Ao mesmo tempo, segui outra tradição familiar, a música, compondo e cantando num quarteto com as minhas irmãs. Houve um momento em que foi difícil escolher qual caminho trilhar, mas percebi que era possível conciliar as duas coisas. Nosso grupo, A Quatro Vozes, segue em atividade. Já dividimos o palco até com a Elza Soares.
Brinco que, em determinado momento, cheguei a ter uma overdose de hospital. E senti que eu podia fazer a diferença fora daquelas quatro paredes. Foi assim que fui me especializar em educação e tive a oportunidade de acompanhar os primeiros passos do Sistema Único de Saúde (SUS) na capital paulista, no início dos anos 1990. Atuava na periferia, em um cenário de insegurança pública, trabalhando com as lideranças comunitárias e implementando o que ficou conhecido como estratégia de saúde da família. Depois de fazer a gestão de atenção primária em um posto de saúde, fui convidada a implantar e gerir novas unidades na Zona Sul de São Paulo.
Durante a minha jornada, tomei conhecimento da terapia comunitária integrativa, e me apaixonei por ela. É uma abordagem criada por um psiquiatra brasileiro baseada em rodas de conversa de uma hora que permitem aos participantes dar vazão a sentimentos, trocar experiências, acolher e ser acolhido. A terapia tem a proposta de ajudar a tirar pessoas do estado de sofrimento, porque, embora a doença seja algo a ser encaminhado e tratado por um profissional, qualquer um pode acolher o sofrimento do outro. Fiz uma imersão no método e, desde 2009, contribuo para formar terapeutas no Instituto Afinando Vidas. Hoje a terapia faz parte da cesta básica do SUS, uma ferramenta valiosa se considerarmos a falta de recursos e especialistas em saúde mental para atender toda a população individualmente. É uma proposta acessível e sustentável, que pode ser aplicada em hospitais, centros de idosos, escolas…
Ao seguir esse caminho, fui convidada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo a expandir a formação de pessoas para realizar rodas terapêuticas pela cidade. Vamos chegar a mais de 5 000 sessões feitas. Durante a pandemia, criamos até um protocolo para que elas ocorressem de forma on-line. Minha ambição agora é levantar evidências científicas sobre os benefícios da terapia comunitária. Na prática, notamos que ela promove relaxamento, reduz o estresse e diminui sentimentos como tristeza e raiva. Foi com esse trabalho de inovação social que ganhei o Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia.
Acabo de voltar de Estocolmo, onde recebi da própria majestade a premiação. Eu e minha irmã e também terapeuta, Jurema, éramos as únicas mulheres negras na cerimônia. Quando chegamos ao palácio, os convidados pararam para olhar. Senti no ar a admiração deles e o fortalecimento da nossa identidade. É muito importante ver a categoria da enfermagem recebendo reconhecimento, não só salarial. E reverenciar o SUS, esse sistema que ajudei a construir tijolo a tijolo. Assim como é fundamental dar voz às pessoas. Muitas delas morrem porque não falam. O acesso à fala é uma forma de cuidado. Tenho orgulho de ser uma enfermeira negra, que representa tantas afrodescendentes e chefes de família que apoiam os outros em seus momentos de fragilidade. Essa conquista é o meu Prêmio Nobel.
Jussara Otaviano em depoimento dado a Diogo Sponchiato
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848