Em 1916, ano em que o químico húngaro George Rosenkranz nasceu, os Estados Unidos elegeram pela primeira vez uma mulher, Jeannette Rankin, para a Câmara dos Representantes. No Brasil, a Caixa Econômica Federal anunciava uma novidade: as mulheres casadas poderiam, enfim, fazer depósitos bancários, desde que autorizadas pelo marido. Outra ativista americana, Margaret Sanger, abrira uma pioneira e quase clandestina clínica de controle de natalidade — ancorada, então, apenas na contracepção masculina, no conhecimento dos períodos de fertilidade feminina, no coitus interruptus e na defesa do direito ao aborto. Foi um escândalo, e o governo chegou a pô-la na cadeia. Aquele mundo de mais de 100 anos atrás foi parcialmente implodido pelo trabalho e pela criatividade de Rosenkranz, um dos pais da pílula anticoncepcional e, portanto, também um dos pais da revolução sexual. Ele foi um daqueles personagens, nem tão raros assim, cujo anonimato impede que seja atrelado a uma fenomenal e irreversível mudança de comportamento da sociedade. Se, na semana passada, a FDA, a agência americana que regula os medicamentos, pôde aprovar uma droga que aumenta a libido das mulheres, um “Viagra feminino”, sem muito espanto, sem censura, à exceção da grita de grupos religiosos, é porque Rosenkranz e seus parceiros pavimentaram o caminho.
De origem judaica, nascido na Hungria, tendo estudado na Suíça, fugiu da sanha dos nazistas no início da II Guerra para se instalar no México. Ali, no pequeno laboratório Syntex, liderou um grupo que elaboraria um composto sintético que simulava a ação da progesterona, o hormônio feminino produzido pelo ovário. Aquela invenção, celebrada em outubro de 1951, a noretindrona, se tornaria o principal componente da pílula. Os primeiros anos depois do lançamento comercial não foram fáceis. Em artigo de 1968, a popularíssima revista Reader’s Digest fez um alerta: “Todo mundo sabe o que é a pílula. É um objeto pequeno — embora seu efeito potencial possa ser muitas vezes mais devastador que o da bomba atômica”. Foi um estrondo, mas a devastação veio na forma da possibilidade do prazer sem risco de gravidez, atalho para a briga incessante, longe ainda de terminar, pela igualdade de gêneros. Carl Djerassi (1923-2015), que também fez parte da equipe original, disse a VEJA: “A pílula mereceria o Nobel da Paz”. Rosenkranz morreu em 23 de junho, aos 102 anos, na Califórnia.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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