Hidroxicloroquina em pacientes leves pode prevenir internação, diz estudo
Análise da Prevent Senior: tratamento precoce evita uma internação para cada 28 pacientes, mas comprovação da eficácia ainda demanda estudo mais profundo
Um estudo realizado pela Prevent Senior mostrou que o uso da combinação de hidroxicloroquina com azitromicina em pacientes com sintomas leves de infecção por coronavírus reduziu em 2,8 vezes o risco de internações. A pesquisa, publicada nesta sexta-feira 17 na medRxiv, plataforma online que recebe artigos médicos antes de serem revisados e publicados em grandes periódicos científicos, avaliou 636 pacientes com idade média de 62,5 anos.
“Nosso estudo mostrou que o uso empírico e consentido desses medicamentos em pacientes de alto risco, no início dos sintomas pode ser benéfico, seguro e reduzir a necessidade de internação, que é o principal problema da Covid-19”, disse a VEJA o cardiologista Rodrigo Barbosa Esper, líder do estudo.
A maior parte dos participantes do estudo era do sexo feminino, 13,4% tinham diabetes, 26,5% hipertensão, 7,7% obesidade, 2,7% fumavam e todos apresentavam sintomas de gripe. Como todos são moradores da cidade de São Paulo, local com transmissão local e principal epicentro do coronavírus no país, diante dos sintomas de gripe, todos foram considerados com suspeita de Covid-19.
É justamente essa característica – a suspeita de infecção por coronavírus – que dá à proposta de tratamento dos pesquisadores o nome “empírico”. De acordo com Esper, um tratamento empírico é utilizado quando o tratamento é iniciado antes do diagnóstico comprovado da doença e é usado no tratamento de infecção bacteriana, por exemplo, quando não se sabe exatamente qual bactéria causou aquela infecção.
“Esse estudo só tem sentido em uma situação de epidemia como a que estamos vivendo. Nesse caso, parte-se do princípio que a maioria das infecções causadas naquela região ou cidade é causada por coronavírus”, explicou o pesquisador.
O estudo
Inicialmente, os pacientes foram atendidos por telemedicina e àqueles que se incluíam nos critérios, definidos como a presença de sintomas leves de gripe por pelo menos três dias e ausência de problemas de saúde como retinopatia grave, doença hepática grave, miastenia gravis, ampliação conhecida do QT e insuficiência renal, era oferecida a possibilidade de receber o tratamento experimental.
Portanto, mesmo mediante recomendação médica, cabia aos próprios pacientes decidirem se queriam ou não receber o tratamento. Dos 636 participantes, 412 aceitaram receber o tratamento e foram considerados como o grupo de intervenção e 224 não aceitaram e foram considerados grupo controle. Todos assinaram um termo de consentimento e foram acompanhados diariamente – por telemedicina – por um médico.
De acordo com os pesquisadores, as características clínicas iniciais foram semelhantes entre os dois grupos, exceto por uma maior taxa de diabetes e AVC no grupo de tratamento. As pessoas que receberam o tratamento também apresentaram maior prevalência de sintomas de gripe que o grupo controle, como febre, tosse, dispneia, diarreia, mialgia, coriza e dor de cabeça.
Os pacientes que aceitaram receber o tratamento tomaram uma dose de 800 miligramas de hidroxicloroquina no primeiro dia e 400 mg do medicamento por outros seis dias. A azitromicina foi administrada nos primeiros cinco dias, em uma dose diária de 500 miligramas.
Os resultados mostraram que 1,9% dos pacientes tratados com hidroxicloroquina e azitromicina precisaram ser internados, em comparação com 5,4% do grupo controle. Quando o grupo de tratamento foi separado em relação ao dia de início do medicamento, aqueles que iniciaram o tratamento em até sete dias após o início dos sintomas tiveram uma taxa de hospitalização menor do que aqueles que começaram o uso do medicamento sete dias após o início dos sintomas (1,17% e 3,2%, respectivamente).
“Em nosso estudo, a cada 28 pacientes que iniciaram o tratamento quando ainda tinham sintomas leves uma internação foi evitada. Pode parecer pouco, mas para um sistema de saúde que já está sobrecarregado e em que o tempo de internação é de 15 a 20 dias e a maioria dos pacientes internados precisaria de respirador, o uso desse tratamento empírico pode ajudar a salvar o sistema de saúde”, diz Esper.
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Os efeitos colaterais apresentados por quem tomou o medicamento foram diarreia, náusea, tontura, vômito, distúrbios visuais e alergia. Duas mortes foram relatadas no grupo de intervenção, uma por síndrome coronariana aguda e uma por câncer metastático. De acordo com os pesquisadores, a causa dos óbitos não estava associada ao tratamento.
“A hidroxicloroquina é cerca de 40% menos tóxica cloroquina e é considerado pela Organização Mundial da Saúde como um dos os medicamentos mais eficazes, seguros e econômicos necessários em um sistema de saúde”, escreveram os autores no estudo.
Prescrição médica
Vale ressaltar que todos os pacientes que receberam o medicamento eram pacientes com alto risco de complicações para coronavírus, que receberam orientação médica para iniciar o uso do medicamento e foram informados de que este ainda não é um tratamento com eficácia comprovada.
“Não quero que esse estudo gere uma histeria coletiva em relação à hidroxicloroquina. O uso consentido não pode ser feito sem avaliação nem acompanhamento médico. Além disso, é essencial que o paciente saiba que a eficácia do tratamento não está comprovada e assim decidir se quer tomar ou não. Os pacientes não podem, em hipótese nenhuma, tomar o medicamento por conta própria”., ressalta o cardiologista.
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Clique e AssineCautela: a eficácia ainda não está comprovada
Vale ressaltar que esse foi apenas um estudo observacional e embora os pesquisadores tenham encontrado uma associação entre o uso da combinação de hidroxicloroquina e azitromicina e a redução na necessidade de internação, ainda não é possível afirmar que o tratamento é eficaz no combate ao novo coronavírus.
Isso só poderá ser confirmado – ou não – após a realização de um estudo clínico ideal, chamado padrão-ouro. Esse é um estudo randomizado controlado duplo-cego. Isso significa que o estudo é projetado para reduzir vieses que poderiam comprometer seus resultados. Nesse tipo de estudo, nem o médico nem os pacientes sabem se receberam o medicamento ou o placebo (duplo cego).
Essa característica reduz a possibilidade de o médico tratar os dois grupos de maneira diferente e também reduz a possibilidade de feito placebo no paciente. Além disso, nesse tipo de estudo os pesquisadores não conseguem escolher quais pacientes entram em qual grupo. Eles são selecionados de forma aleatória (“randomizados”) e a composição dos dois grupos é aproximadamente equivalente (“controlada”).
Há muitos estudos nesse modelo em andamento, que avaliam a eficácia da hidroxicloroquina – combinada ou não com a azitromicina – no tratamento da Covid-19, mas nenhum foi finalizado. O estudo da Prevent Senior não seguiu nenhum desses critérios, por isso é considerado um estudo observacional.
“Estudos randomizados duplo-cego levam tempo. Os resultados podem demorar meses ou anos. Diante da pandemia que estamos vivendo, optamos por um estudo pragmático para tentar controlar essa epidemia. Esse não é um estudo definitivo, mas levanta a hipótese [já vista em estudos em laboratório] que talvez a hidroxicloroquina influencie a replicação viral. Parece que ao iniciar o tratamento precocemente, há menos replicação viral, menos inflamação e menos lesão pulmonar. Pode ser que o tratamento tardio de pacientes com hidroxicloroquina não seja benéfico, mas o precoce sim. Isso é algo que estamos observando na prática clínica, mas que só será comprovado daqui a alguns meses.”, diz Esper.
Riscos
Embora a hidroxicloroquina seja um medicamento menos tóxico que a cloroquina e ambos já sejam usados há décadas para o tratamento de malária e de doenças inflamatórias, seu uso não está ausente de riscos. Pesquisadores do Brasil e ao redor do mundo alertam para o risco do uso off-label de um medicamento antes da realização de testes clínicos duplo-cego randomizados e controlados.
Aprovar um medicamento sem fazer esse tipo de estudo primeiro pode ter consequências graves. Um exemplo emblemático dos riscos de se aprovar um medicamento sem a realização de estudos rigorosos, que sigam o padrão explicado acima, é a talidomida. Hoje o medicamento é utilizado no Brasil para tratar hanseníase. Mas na década de 1950 seu uso foi aprovado na Europa para insônia.
Na época, o medicamento foi considerado extremamente seguro, inclusive para ser usado por mulheres grávidas. Com o passar do tempo, notou-se que ele também era capaz de reduzir os terríveis enjoos matinais durante a gravidez e ele começou cada vez mais a ser prescrito para grávidas. Anos depois descobriu-se que a talidomida causava deformações físicas em bebês, além de outros graves efeitos colaterais. O medicamento foi proibido em muitos países, mas o estrago já estava feito e milhares de crianças foram afetadas por essas deformidades.
Você pode se questionar que a situação é diferente e o uso da hidroxicloroquina para os tratamentos já aprovados passou por estudos rigorosos que atestaram sua segurança. De fato, isso é correto. No entanto, em entrevista à VEJA, a pesquisadora Kome Gbinigie, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, explicou que “ainda não há evidências robustas da segurança e eficácia dessas drogas no contexto da Covid-19. Portanto, existe o risco de que esses medicamentos não sejam eficazes para a Covid-19 e têm um risco adicional de causar danos às pessoas que os tomam”.
Hospitais na Suécia interromperam o uso do medicamento em pacientes com Covid-19 após diversas pessoas apresentaram efeitos colaterais como fortes dores de cabeça e perda de visão periférica. Cardiologistas americanos pediram aos médicos que tomem conhecimento de “possíveis implicações sérias” quando a cloroquina ou a hidroxicloroquina são usados por pessoas com doenças cardiovasculares existentes – um dos efeitos colaterais do medicamento é arritmia cardíaca.
Em entrevista coletiva realizada pelo Ministério da Saúde há algumas semanas, técnicos da pasta explicaram as razões por que o uso da cloroquina e hidroxicloroquina não foi liberado – até o momento – para o tratamento de pacientes com quadros leves da infecção pelo novo coronavírus.
A preocupação do uso desses medicamentos em tratamentos mais ligeiros, segundo Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos, é o potencial dos remédios em gerar arritmias cardíacas. “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esses medicamentos podem produzir o prolongamento de uma das fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”, detalhou.
No caso dos pacientes graves, “os benefícios superam os riscos”. Já os casos leves ainda não contam com pesquisas médicas “robustas o suficiente” para gerarem uma política de saúde própria e, portanto, não seria possível traçar uma análise dos benefícios adquiridos diante dos riscos resultantes do uso da substância.