São avassaladoras as boas notícias sobre os tratamentos contra o câncer. Nas últimas três décadas, a mortalidade caiu à metade. Hoje, em cada dez casos identificados, apenas três têm prognóstico muito ruim. Há permanente esperança de freio à expansão acelerada de células cancerígenas. O mais completo estudo genético já feito, publicado na prestigiosa revista Nature, acaba de oferecer outro alento — seus resultados permitem detectar a origem da doença em regiões do DNA até então inimagináveis. Não se trata da descoberta de um novíssimo medicamento, de uma terapia revolucionária — mas de um mapa para o futuro, com a precoce identificação das mutações do DNA que culminarão em tumores. “O levantamento abre uma espetacular avenida para tratamentos e testes diagnósticos jamais pensados”, diz o oncologista Bernardo Garicochea, diretor do Centro de Medicina Genômica e do grupo Oncoclínicas, de São Paulo. “O trabalho é um dos mais relevantes da década.”
Batizada de Projeto Pan-Câncer, a pesquisa envolveu os esforços de 1 300 cientistas distribuídos por 37 países. Para entender seu real impacto, é fundamental ressaltar que o câncer é uma doença do genoma, a sequência completa de DNA do organismo. Sempre se pensou que os tumores fossem causados apenas por mutações nos genes. Revelou-se agora que não. Os pesquisadores identificaram que algumas alterações se formam em outras regiões, como os telômeros, estruturas localizadas nas extremidades dos cromossomos e que têm entre suas funções proteger o DNA contra o envelhecimento. Dessa conclusão, que soa detalhista mas é crucial, os especialistas poderão desenvolver terapias preventivas. Só foi possível um olhar tão minucioso porque os cientistas vasculharam 38 tipos de câncer de 2 600 pacientes, rastreando 30% das formações de DNA de cada modalidade da doença — antes, apenas 1% tinha sido escrutado. O levantamento foi compilado por supercomputadores, com o cruzamento de dados que iam da infância à maturidade dos voluntários.
Deu-se um passo além com a análise das principais causas das mutações. Cerca de dois terços de todos os tumores são provocados por alterações que acontecem ao acaso. O outro terço é explicado por alterações herdadas dos familiares ou pelo estilo de vida, como o tabagismo, dieta desequilibrada, uso abusivo de álcool, exposição ao sol e à poluição. A fumaça do cigarro e o consumo de bebidas alcoólicas foram os fatores que mais se mostraram destruidores do DNA. O trabalho também confirmou o que já se desconfiava em relação à atuação do câncer no organismo: as mutações ocorrem com mais frequência em locais em que os tecidos se formam mais lentamente no organismo — onde, em tese, a doença teria dificuldade de proliferar.
Os resultados divulgados não põem um ponto-final no assunto. Em 5% das pessoas analisadas não foi encontrado o tipo da mutação que causava a doença. Os pesquisadores agora vão se debruçar sobre um número 100 vezes maior de genomas. E aqui se levanta uma questão ética: a privacidade dos pacientes. O estudo Pan-Câncer foi realizado em grande parte com base em dados pendurados na “nuvem” digital de diferentes países. Estudos anteriores com bancos de dados genéticos mostraram, contudo, que é possível identificar os pacientes por meio de hackers. Nesse caso, os dados que salvariam vidas teriam um subproduto negativo. O problema: dispor de informação prematura sobre a possibilidade de um cidadão desenvolver uma doença poderia definir as decisões sobre contratações de trabalho ou sobre negativas nos planos de saúde.
Publicado em VEJA de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674