Há exatos dez anos, a chegada de um remédio para o diabetes tipo 2 no Brasil foi responsável por um dos mais ruidosos cismas no mercado farmacológico, ao deflagrar uma guerra entre os defensores e os detratores de seu uso como emagrecedor. A liraglutida — de nome comercial Victoza — começou a ser usada também por pessoas saudáveis que precisavam (ou queriam) perder peso. Tinham o aval de médicos responsáveis e competentes — prática na medicina conhecida como off-label, ou fora do rótulo, em tradução literal.
O estoque inicial, previsto para durar um mês, foi vendido em apenas uma semana. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chegou a declarar publicamente que “o uso do produto para qualquer outra finalidade além do antidiabético caracteriza elevado risco sanitário para a saúde da população”. Como o tempo muitas vezes é o senhor da razão, sólidos estudos científicos comprovaram a eficácia e o reduzido risco da droga na luta com a balança — e agora, em 2021, ela se tornou a substância mais largamente prescrita nos consultórios particulares de endocrinologia. “É a classe de emagrecedores com ação mais natural já desenvolvida”, diz Antonio Carlos do Nascimento, doutor em endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A estatística ajuda a entender o interesse pelo medicamento. Dos 40 milhões de brasileiros na batalha contra os quilos a mais, 16 milhões não conseguem perder peso apenas com mudanças no estilo de vida. Desse grupo, metade apresenta alguma restrição ao clássico arsenal químico disponível, as anfetaminas e a sibutramina, que atuam no sistema nervoso central.
A liraglutida “imita” no organismo um hormônio, o GLP-1, ligado à produção de insulina (eis a ação no diabetes) e à sensação de saciedade (com menos fome, perde-se peso). “Ela não está isenta de efeitos colaterais, como náusea, dor abdominal e constipação, mas permitiu finalmente incluir até mesmo pessoas mais fragilizadas nos tratamentos para emagrecer, como doentes psiquiátricos, com câncer e problemas de coração”, diz a endocrinologista Claudia Cozer Kalil, coordenadora do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. No início deste ano, um segundo remédio antidiabético de mesma linha, e que já vinha sendo sobejamente aplicado no Brasil, a semaglutida (nome comercial Ozempic) comprovou ter efeito semelhante em estudo publicado na reputada revista The New England Journal of Medicine. Diferentemente das anfetaminas, ambos são isentos de prescrição médica. Convém, portanto, a regra de obrigatório bom senso: procurar um médico. “Há riscos, daí a necessidade de acompanhamento profissional”, diz o clínico geral e endocrinologista Fabiano Serfaty. “Mas os estudos têm mostrado resultados bastante impressionantes.”
Verdade. Em média, de acordo com as pesquisas citadas por Serfaty, a perda de gordura proporcionada pelas novas drogas gira em torno de 15% do peso inicial ao longo de um ano, taxa 40% superior ao que se vai com recursos habituais. Em um país com 26,8% de adultos obesos (veja no quadro acima) o impacto é brutal. Afora os raros casos associados exclusivamente à hereditariedade, a culpa dos quilos extras é o excesso de comida consumida. Em tempos de pandemia, ressalve-se, com famílias inteiras trancafiadas em casa, as refeições (e as tentações) se transformaram em atrativo ainda maior. E, como num círculo vicioso, quanto mais se exagera no prato, mais se quer comer. Os mecanismos da obesidade são comparados ao vício, sim, por envolverem o sistema cerebral de recompensa. No cérebro dos gordos pode haver uma deficiência na atividade da dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer. Para se sentirem saciados, portanto, os rechonchudos consomem mais alimentos. O açúcar, sobretudo, capaz de estimular muito rapidamente o aumento da dopamina, é o grande inimigo — à espreita, insidioso e traiçoeiro, desde os primeiros anos de vida, daí a necessária preocupação dos pais com a alimentação infantil feita à base de alimentos ultraprocessados.
Jovens com quilos extras sofrem muito mais para emagrecer quando crescem. Adultos que foram obesos na infância vivem até dez anos menos em relação aos que mantiveram uma vida com regras alimentares. É até os 20 anos que o número de células de gordura é definido no organismo. A partir de então, nada é capaz de diminuir essa quantidade — nem a mais rigorosa das dietas. Quando se perde peso, as células adiposas apenas perdem volume, mas continuam lá, ávidas para recuperar a dimensão anterior. E aqui convém destacar, uma vez mais, sem exageros, o papel da liraglutida. Há menos de um ano, o remédio recebeu o aval inédito para ser usado em meninas e meninos com idade a partir de 12 anos, com bons resultados.
Contudo, apesar do sucesso medicamentoso, não se pode ignorar, muito pelo contrário, o papel primordial, em crianças e adultos, da atividade física. “A prática regular não só aumenta o gasto calórico, como traz o bem-estar essencial para manter a força de vontade na dieta”, diz Eduardo Rauen, professor de nutrologia da pós-graduação do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Há poucos meses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apertou o cinto em relação ao tempo ideal a ser dedicado aos exercícios para impactar na saúde, recomendando o dobro que estava estabelecido por décadas. Adultos de 18 a 64 anos devem praticar de 150 a 300 minutos por semana de treino moderado (como caminhada ou jardinagem, por exemplo), ou de 75 a 150 minutos se a intensidade for vigorosa (corrida e subir escadas). Ou seja, nada, nem mesmo o mais decisivo remédio, faz milagres isoladamente. É aprendizado que não pode sair da pauta — especialmente agora, com a eclosão das internações e mortes em decorrência da Covid-19.
Recentemente, minuciosos estudos em torno das comorbidades associadas à pandemia mostraram que a obesidade agrava a infecção pelo novo coronavírus, podendo aumentar em até quatro vezes o risco de morte depois do contágio. Um organismo gordo tem capacidade reduzida para produção de anticorpos e o tecido adiposo funciona como reservatório para o vírus. Emagrecer, portanto, é compulsório — e a injeção de armas usadas contra o diabetes pode ser útil. Com cuidado, insista-se, ainda que soe repetitivo o zelo.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735