Médicos advertem: testes genéticos devem ser usados com cautela
Caso mais recente envolveu o ator Chris Hemsworth, que decidiu dar uma pausa na carreira ao descobrir seu alto risco de Alzheimer
Uma das maiores conquistas científicas do século XXI foi a conclusão do Projeto Genoma Humano, em 2003, uma fabulosa empreitada de treze anos que apresentou ao mundo, pela primeira vez, informações sobre os 3 bilhões de pares de bases químicas que compõem o DNA humano. O novo campo do conhecimento revolucionou a medicina ao iluminar a influência genética no desenvolvimento de doenças e propiciar métodos diagnósticos, terapias e medicamentos que levam em conta as informações contidas nos genes, tornando o tratamento mais eficaz.
Como em toda novidade, porém, ainda existem muitas perguntas sem resposta sobre o peso real das mutações de DNA e o papel dos testes genéticos na predisposição a problemas de saúde — uma questão que voltou à tona recentemente no episódio do anúncio do ator australiano Chris Hemsworth, 39 anos — o Thor dos filmes da Marvel —, de que vai dar uma pausa na carreira porque descobriu, por meio de um exame genético, que corre risco elevado de desenvolver a doença de Alzheimer. Musculoso, saudável e bonito de arrepiar, Hemsworth tomou conhecimento de sua predisposição genética por mero acaso. O ator participava da série Limitless (Sem Limites), da National Geographic, que discorre sobre os fatores que aumentam a longevidade, quando, no quinto episódio, foi submetido a uma série de exames, sendo que um deles acendeu o sinal amarelo.
O teste em questão analisa trechos específicos do DNA para apontar as chances de aparecimento de enfermidades que tenham alterações de genes entre as suas origens — caso da doença de Alzheimer, o tipo mais comum de demência e um dos mais desafiadores no que diz respeito a diagnóstico e tratamento. A função desse teste é investigar mutações no gene APOE, responsável por modular o metabolismo de gorduras. Não se sabe ao certo como o gene interfere no desenvolvimento de Alzheimer, mas a associação entre ele e a doença é comprovada e tem sido alvo de investigação nas últimas três décadas.
Existem três variantes do gene relacionadas à doença (veja o quadro) — uma que reduz as chances, uma que não atua nem para mais, nem para menos, e uma, o APOE4, que aumenta o risco. O resultado do teste a que Hemsworth se submeteu o colocou na faixa mais elevada do APOE4: a de 2% a 3% dos seres humanos que carregam duas cópias da variante (uma herdada do pai, outra da mãe), o que eleva em dez vezes a possibilidade de aparecimento da enfermidade, caracterizada por perda da memória e da capacidade cognitiva em razão da morte de neurônios.
Deparar com uma revelação dessas é assustador e costuma levar as pessoas a, como o ator australiano, fazer uma pausa para avaliar o futuro. Mas os testes genéticos de um modo geral — que ganharam enorme popularidade e facilidade de acesso nos últimos anos — precisam ser encarados com certa cautela. Chamados de escores poligênicos, eles indicam probabilidades de desenvolvimento de doenças que tenham uma parcela de risco atribuível a alterações genéticas e costumam ser feitos por pessoas saudáveis que desejam conhecer sua predisposição a males como câncer ou distúrbios cardiovasculares. Não são, no entanto, um diagnóstico definitivo. Além disso, estão sujeitos a alterações, já que a cada dia surge uma informação nova sobre a complexa teia de interação e funcionamento dos genes, o que obriga a revisões contínuas do papel do DNA na saúde dos indivíduos.
Também é preciso levar em conta que boa parte das enfermidades investigadas nesses exames não tem só uma, mas várias causas, sendo a genética uma peça no quebra-cabeça. Incluem-se nessa categoria a obesidade, vários tipos de câncer (até 40% dos casos podem ser evitados com a adoção de hábitos saudáveis) e o próprio Alzheimer. Especialistas vêm propondo medidas para reduzir a chance de ocorrência desse tipo de doença, entre elas evitar o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e o sedentarismo, prevenir-se contra a diabetes, estimular o exercício da mente por meio de novos aprendizados, leituras e jogos, e praticar cuidados simples, como checar a visão e a audição. Hemsworth, ao anunciar a pausa na carreira, afirmou que pretende seguir à risca todas as iniciativas que contribuam para atenuar a força que a alteração em seu DNA possa exercer para a manifestação do problema.
Os testes genéticos, sobretudo aqueles vendidos diretamente ao consumidor e facilmente executados — basta comprar o kit pela internet, enviar a amostra para a análise e aguardar o resultado por e-mail —, tornaram-se uma mina de ouro para fabricantes e laboratórios. Calcula-se que até 2030 o setor esteja movimentando 2,7 bilhões de dólares, projeção que atrai tanto empresas de ponta quanto as menos sérias. De acordo com a FDA, agência reguladora de medicamentos, exames e dispositivos de saúde nos Estados Unidos, nem todas as marcas de teste sustentam seus achados com informações científicas consistentes.
Fazer ou não um exame genético, sem que haja indicação precisa para sua realização, é questão debatida na comunidade médica, que, em geral, desaprova a iniciativa. “No caso do Alzheimer, o que o paciente fará com a informação se não há medicações que modifiquem o curso da doença?”, indaga o neurologista Ivan Okamoto, do Hospital Israelita Albert Einstein. Ainda há restrições ao fato de os resultados serem enviados diretamente ao cliente. “Sem maiores explicações, eles podem gerar ansiedade injustificada”, alerta o geneticista Salmo Raskin, diretor do laboratório Genetika. “É importante que os dados sejam esclarecidos. O paciente precisa ser assessorado”, completa o médico Henrique Galvão, gerente médico da Dasa Genômica.
O conhecimento genético garimpado até aqui pelos cientistas tem valor excepcional. Exames de primeira linha já conseguem detectar mutações que confirmam diagnósticos com segurança e direcionam tratamentos que, até pouco tempo atrás, não existiam. Um exemplo é o teste que identifica alterações nos genes BRCA1 e BRCA2, os “genes Angelina Jolie”, associados a 70% de chance de a mulher que o carrega desenvolver algum tipo de tumor de mama. Em 2013, aos 37 anos, a atriz, que perdeu a mãe para esse câncer, confirmou ser portadora de genes alterados e se submeteu a cirurgia para remoção das mamas, ovário e trompas. Hoje, não teria que tomar decisão tão radical: em março, pesquisadores britânicos e americanos anunciaram a descoberta de uma medicação que reduz consideravelmente os riscos. A genética é uma arca de tesouros, mas requer cuidado no manuseio de um saber tão precioso.
Publicado em VEJA de 7 de dezembro de 2022, edição nº 2818