Para a enorme parcela da população planetária que está trancada dentro de apartamentos, no esforço coletivo para conter o avanço do novo coronavírus, o contato olho no olho com o mundo lá fora ficou restrito a um espaço doméstico do qual os moradores raramente chegavam perto: as janelas da casa. É nelas, e também em varandas e balcões, que vizinhos que mal se cumprimentavam trocam agora acenos, formam corais, exercitam-se em mutirão e até celebram aniversários. A moda começou na Itália, fechada há mais de um mês, onde a cantoria improvisada nos balcões foi parar nas redes e, de lá, ganhou o mundo, inclusive o Brasil, impulsionada pelo pendor local para o bom e velho bate-papo. Descobriu-se então que se debruçar no parapeito é uma maneira de aplacar a angústia da separação e reinventar o convívio social, ainda que só com quem mora por perto. “Em uma sociedade em que o individualismo dominava, o vírus trouxe de volta a vontade de ficar junto, e a ideia de que estamos todos no mesmo buraco amplifica isso”, explica o antropólogo Roberto DaMatta.
A música tem sido a forma mais usada para romper o silêncio das ruas e unir a vizinhança. No bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, a soprano Fernanda Schleder, de 41 anos, e o barítono Frederico de Assis, de 51, ambos do coro do Theatro Municipal (fechado, é claro), apresentam há quatro domingos, da varanda de seu apartamento, uma seleção de músicas que vão do lírico ao popular. “Cantamos para não enlouquecer e ainda levamos um pouco de alento e carinho aos que estão à nossa volta”, diz Fernanda. Com a caixa de som ligada, a voz da dupla ecoa pelo bairro, às vezes acompanhada da do filho Pietro, de 6 anos, entoando árias, canções infantis e, para finalizar, Cidade Maravilhosa. “Mais de 100 pessoas saem à janela todas as vezes e cantam com a gente”, comemora Assis. “Mal via meus vizinhos antes. Agora a gente se comunica por aplicativo tanto sobre as medidas tomadas pelo prédio quanto sobre o canto de Fernanda e Fred. Sinto que nos tornamos amigos”, relata a aposentada Vera Maria Gusmão, que mora no edifício e não sai de casa há mais de um mês.
A falta de contato humano tem sido uma preocupação da comunidade médica durante a pandemia, já que o stress do isolamento prolongado aumenta a predisposição para transtornos de ansiedade e comportamentos depressivos. “Todos podem ser atingidos. Crianças, adolescentes, idosos e pessoas com doença psiquiátrica preexistente apresentam mais riscos”, alerta o psiquiatra Alexandre Karam J. Mousfi, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie do Paraná. Vem daí o efeito salutar do bolo de aniversário na sacada, enquanto o prédio todo canta Parabéns, do companheirismo da turma que toma sol na varanda e até da união de quem, batendo panela, protesta na janela contra Bolsonaro — hábito que a quarentena ajudou a propagar. A ginástica na varanda, contagiante, ocorre em prédios de Nantes, no oeste da França, a Brasília, onde o projeto Movimente-se em Casa leva atividades físicas a 35 condomínios: todo dia, professores voluntários, no térreo, executam exercícios e passos de dança acompanhados por moradores de todos os andares.
Os momentos de camaradagem nos edifícios são uma reedição, em tempos de coronavírus, do antigo costume nas cidades pequenas de, depois do jantar, sem televisão, as pessoas se postarem na janela para bater papo com quem passava na calçada. As possibilidades são inesgotáveis. Em Paris, toda noite, às 19 horas, a população abre a vidraça para bater palmas para os trabalhadores do setor de saúde, outro gesto cada vez mais internacional. Na Itália, a Alice nella Città, mostra paralela do Festival de Cinema de Roma, incentiva quem tem o equipamento necessário a, de sua janela, projetar trechos de filmes famosos nas fachadas. Na Espanha, Polônia, Venezuela, Estados Unidos, em toda parte, cantores, instrumentistas e até DJs aderiram ao velho novo costume e passaram a fazer de seus balcões um palco para sua arte. Na Nova Zelândia, muitas casas agora têm na janela um ursinho de pelúcia em pose divertida — parte da brincadeira de “caça ao urso”, em que as crianças saem a pé, onde for seguro, ou de carro, com os pais, para procurar o brinquedo. Até a primeira-ministra Jacinda Ardern acomodou um ursinho na janela da residência oficial, em Wellington, onde está isolada com o marido e a filha de 1 ano. Bom será se essa cordialidade sobreviver e se mantiver acesa no mundo pós-pandemia.
Publicado em VEJA de 22 de abril de 2020, edição nº 2683