Mortes e internações caem entre vacinados, aponta levantamento exclusivo
Em 26 das 27 capitais brasileiras, participação de quem tem 80 anos ou mais teve queda no total das mortes pela Covid-19
A calamidade sanitária pela qual passa o Brasil por causa do avanço do coronavírus ganhou novo patamar na terça 6, quando o país rompeu a marca de 4 000 mortes pela Covid-19, recorde alcançado menos de duas semanas após ter cruzado a já infame linha das 3 000 vítimas diárias. Em pouco mais de um ano, 340 000 brasileiros tiveram a vida ceifada pelo vírus. O país chegou à triste condição de, com 3% da população mundial, ter hoje um a cada três mortos pela doença no mundo. Como em toda a tragédia dessa magnitude, muitos foram os erros cometidos, a começar pela descoordenada política de isolamento social, que tem provocado mais balbúrdia e crise do que ajudado efetivamente a conter o vírus. Outro equívoco fatal a ser computado na conta do governo Jair Bolsonaro foi a demora para o início da vacinação. Os primeiros resultados da campanha de proteção contra o coronavírus iniciada por aqui em janeiro deixam evidente que muitas vidas poderiam ter sido poupadas com um esforço maior em busca da imunização em massa desde cedo.
A corrida para diminuir o tamanho da tragédia continua e, combinada ao esforço pelo isolamento social, há a urgente necessidade de uma oferta maior de vacinas. A esperança cabe em um frasco de poucos mililitros e a multiplicação de doses começa a aliviar algumas das trágicas estatísticas nacionais. Depois de quase três meses de repetição de cenas de pessoas felizes recebendo agulhadas, o país colhe os primeiros bons resultados dessa ação. A pedido de VEJA, a ONG Impulso Gov, que acompanha os dados da pandemia e da imunização, fez um levantamento que constatou um efeito positivo entre os pioneiros na fila da vacinação: em 26 das 27 capitais (a exceção foi Macapá), caiu a participação de quem tem 80 anos ou mais no total das mortes (veja o quadro abaixo). Em dezenove delas também despencou o porcentual desse grupo no total de hospitalizações por síndrome respiratória aguda grave (SRAG). “O perfil de internações e dos óbitos tem sofrido mudanças recentemente, com mais jovens e menos idosos nessa proporção. É difícil isolar apenas o efeito da vacinação, mas, pelo que vimos nos Estados Unidos e em Israel, é plausível que seja por causa da imunização”, diz Marco Brancher, coordenador de análise de dados para governo da plataforma. “Se não houvesse a vacinação, não haveria motivo para essa redução proporcional de internação e especialmente óbitos entre os mais idosos”, concorda o coordenador do Centro de Contingência da Covid-19 do Estado de São Paulo, Paulo Menezes.
Mesmo em locais críticos da pandemia, como Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, houve quedas expressivas entre os mais velhos. Dados da prefeitura paulistana indicam que o número de mortes entre quem tem mais de 80 anos caiu acima de 50% entre janeiro e março. “Essa redução se deve a uma combinação de fatores: vacinação e uma mudança de protocolo que introduziu alguns exames para identificar os pacientes que tendem a piorar”, afirma o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido. No Rio, as mortes de idosos de 80 a 89 anos caíram quase 65% entre dezembro e março. No Distrito Federal, a queda nas internações em UTI de pessoas com mais de 80 anos foi de 58% desde janeiro.
Esses efeito positivo da imunização poderia estar em um estágio bem mais avançado, não fosse a negligência do governo federal. Bolsonaro desdenhou da Covid-19, não se empenhou pela aquisição de vacinas e desprezou a iniciativa do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), de apostar na CoronaVac, até hoje a vacina mais aplicada no país (bem atrás vem a AstraZeneca/Oxford, desenvolvida em parceria com a Fiocruz). O Ministério da Saúde chegou a rejeitar uma oferta de 70 milhões de doses feita pela Pfizer em agosto. Quando o presidente começou a ser cobrado pela falta de imunizantes, disse, em meio à corrida global dos países por doses, que eram as farmacêuticas que deveriam procurar o Brasil. Agora, para tentar conter danos em razão da queda de popularidade e da pressão política, tenta colar a versão de que sempre apoiou a vacinação. O país aplicou até aqui quase 30 milhões de doses — sendo mais de 20 milhões de primeira dose. Em igual número de dias, os Estados Unidos vacinaram 78 milhões de pessoas. Detalhe: o impulso se deu com a chegada de Joe Biden, que derrotou o negacionista Donald Trump, ídolo de Bolsonaro.
A dificuldade para viabilizar a compra e entrega de vacinas tem se refletido no voo cego que é o planejamento da vacinação no país. Depois de entregar menos do que havia previsto em fevereiro e março, o governo acena para uma nova frustração em abril, mês que para muitos seria uma espécie de virada na marcha lenta da imunização: vai entregar apenas 53% dos 47,3 milhões de doses previstas. “Chegamos a um ponto em que está diminuindo a faixa de idade para a vacinação e isso aumenta muito o público-alvo. Então, precisamos ter uma confirmação certeira e garantida do ministério de quantas doses receberemos”, cobra o presidente da Frente Nacional de Prefeitos, Jonas Donizette. Enquanto 79% dos idosos com 80 anos ou mais receberam ao menos uma dose, esse porcentual cai para 4% entre aqueles com 60 a 64 anos.
Apesar de os resultados preliminares apontarem quanto a vacinação funciona no combate a essa epidemia, especialistas são unânimes em afirmar que ela tem de ser combinada com isolamento social. Segundo a Fiocruz, isso precisa ocorrer até que 70% da população esteja vacinada. Um dos exemplos recentes de que o fechamento total surte efeito é Araraquara, no interior de São Paulo. Com o sistema de saúde à beira do colapso, a prefeitura decretou lockdown em fevereiro e, desde então, houve uma redução de 75% nos óbitos.
Além da experiência caseira, há exemplos bons e ruins lá fora para o Brasil calibrar os seus próximos passos. Um deles é o Chile, onde 7 milhões dos 19 milhões de habitantes foram imunizados, mas o bom desempenho não freou o aumento dos casos. “A população não esperou a imunização ter resultado e relaxou o isolamento. As pessoas ficaram mais expostas, com uma nova variante que é mais transmissível e mais agressiva”, analisa Erika Manuli, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. Por outro lado, a vacinação avançada nos Estados Unidos, Reino Unido e Israel, combinada ao lockdown, traz inspiração. Os americanos registraram 252 000 casos por dia em janeiro — hoje, estão em 62 000. A previsão do presidente Joe Biden é que até 19 de abril todos os adultos terão recebido ao menos uma dose. No grupo que inclui Brasil, Estados Unidos, México, Índia, Reino Unido, Rússia e Itália, países que tiveram mais de 100 000 óbitos por Covid-19, o Brasil é o único que apresenta tendência crescente e contínua — todos os demais estão entre as nações que mais vacinam no mundo.
Embora tenha atingido nesta semana a marca de 1 milhão de vacinados por dia (ritmo que acabou não se sustentando), o Brasil ainda perde energia em discussões estéreis, como o uso de medicamentos sem comprovação científica contra a doença, uma obsessão de Bolsonaro. Na quarta 7, ele foi a Chapecó (SC) para elogiar o prefeito local pelo uso do chamado tratamento precoce — a cidade, no entanto, teve alta de casos e mortes neste ano e está com 100% dos leitos de UTI ocupados. Levantamento da consultoria Quaest mostra que o presidente aborda o tratamento precoce em 29% de seus textos e vídeos publicados neste ano nas redes sociais e que suas postagens somadas atingiram 4,98 milhões de pessoas. Ou seja, mesmo com milhares de cadáveres por dia no país, lamentável e inexplicavelmente, Bolsonaro continua jogando a favor do vírus. Menos cloroquinas e mais vacinas, é disso que o Brasil precisa no momento.
O ainda desorganizado esforço estatal necessário para acelerar a imunização deu margem a um movimento que, mal planejado, pode gerar ainda mais confusão. Na última quarta, a Câmara aprovou projeto que autoriza a iniciativa privada a comprar vacina para proteger seus funcionários. A condição é que os empresários doem 50% ao Sistema Único de Saúde e que as compras sejam concretizadas depois que os laboratórios entregarem o que foi acordado com o governo. A iniciativa, que ainda precisa passar pelo Senado, é interessante, mas precisa ser mais bem debatida e obedecer às regras determinadas pelo poder central (problema: ainda não temos isso). Além da criação de uma fila dupla de vacinação, algo confuso do ponto de vista da organização, especialistas chamam atenção para o risco de se abrir uma brecha para a aquisição de imunizantes ainda não aprovados pela Anvisa.
Em meio à polêmica da entrada em cena da iniciativa privada, o poder público corre para tentar garantir que as remessas prometidas efetivamente cheguem no prazo. Até dezembro, estão garantidos por contratos mais de 400 milhões de doses. O perigo é que, diante da forte demanda mundial pelos produtos, atrasos como o ocorrido em abril podem voltar a se repetir. Por essa razão, a Impulso Gov fez projeções com base em diferentes possibilidades de número de doses. No pior cenário, em que se presume que apenas metade da projeção de produção nacional será realizada, o país vacinará os mais de 73 milhões de indivíduos dos grupos prioritários até o fim do ano. Numa projeção menos catastrófica e mais realista, o prazo para o término dessa etapa ocorrerá em junho. Mais vacinas e mais isolamento social — não há outra receita hoje para salvar vidas no país.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733