Nada é proibido: as novas recomendações contra alergias na infância
Um novo entendimento recomenda que, para evitar crises, as crianças sejam expostas a todos os alimentos entre 6 meses e 1 ano de idade
Alergias alimentares estão na lista dos pesadelos de qualquer pai ou mãe. Como em geral é muito difícil saber se os filhos têm predisposição para apresentar reações exacerbadas a algum nutriente, sempre houve o temor de que essas respostas aparecessem ao primeiro contato dos bebês com os alimentos. Por isso, durante muito tempo prevaleceu na medicina a orientação de que ingredientes sabidamente alérgenos deveriam ser incluídos na dieta infantil apenas depois da introdução de refeições sólidas e de forma bem espaçada. Uma safra recente de pesquisas mostra que a história é bem diferente: quanto mais cedo os alimentos forem oferecidos aos pequenos, menor o risco de eles apresentarem alergias, especialmente as severas.
Tradicionalmente, os ingredientes que mais causam reações em crianças e em adultos são leite de vaca, ovo, frutos do mar, peixes, amendoim, castanha, soja e trigo. A alergia acontece como resposta do corpo a compostos presentes nos alimentos que são classificados pelo sistema imunológico como prejudiciais ao organismo. O ataque das células de defesa faz disparar a produção de uma cascata de substâncias, entre elas a histamina, associada à inflamação. Em tese, tudo isso ocorre para proteger o corpo. Mas a resposta exagerada das defesas leva à progressão de um processo inflamatório extremamente danoso. Há graus na manifestação dos sintomas — de coceiras e erupções passageiras na pele à parada respiratória. As reações podem simplesmente passar com o tempo ou se prolongar pela vida adulta. Isso é bastante comum na alergia ao amendoim. Em geral, estima-se que cerca de 8% das crianças e 3% dos adultos apresentem crises alérgicas.
No tempo em que o processo alérgico era razoavelmente desconhecido pela ciência, havia uma regra de ouro: precaução. Ela ditava o afastamento das comidas que mais provocam reações indesejadas dos pratos das crianças até os 2, 3 anos. No entanto, descobriu-se que muitos dos sintomas interpretados como sendo de hipersensibilidade alimentar eram reflexos da imaturidade dos sistemas imunológico, nervoso e gastrintestinal dos bebês.
As recentes revelações são atalho para uma mudança comportamental no cotidiano das famílias. Prevenir a alergia continua sendo muito difícil, porém a exposição aos alimentos mais alérgenos entre 6 meses e 1 ano de vida baixa consideravelmente a possibilidade de sua ocorrência. “Descobrimos que não havia sustentação científica para a orientação anterior”, diz a médica Jackeline Motta Franco, coordenadora do Departamento de Alergia Alimentar da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai). “Já não se deve retardar a apresentação dos alimentos para um ano depois do nascimento do bebê.” É, de fato, uma revolução.
Os resultados da mudança nas recomendações pelas sociedades científicas mundiais começam a surgir. Uma recente pesquisa feita por duas das mais reputadas instituições australianas de ciência para a nutrição demonstrou que a alteração nas diretrizes teve impacto decisivo na queda de casos de reações alérgicas alimentares graves em crianças. Segundo o estudo, publicado no periódico The Journal of Allergy and Clinical Immunology, na faixa de 1 a 4 anos, a taxa anual de aumento de internações por anafilaxia alimentar caiu de 17,6% ao ano entre 1999 e 2007 para 6,2% ao ano entre 2008 e 2015 e depois 3,9% ao ano desde 2016, quando se estabilizou. Entre 1999 e 2007, a orientação era evitar alimentos alergênicos na faixa de 1 a 3 anos. A partir de 2008, a indicação foi para não atrasar a introdução desses alimentos. Desde 2016, a orientação é oferecê-los com frequência e desde cedo para os bebês — e os resultados dessa nova postura começam a despontar.
No Brasil, ainda não há dados confiáveis sobre o impacto das transformações. Existe, no entanto, preocupação dos especialistas com diagnósticos excessivamente cuidadosos. As alergias são um problema, não há dúvida. Contudo, tratar como processo alérgico algo que não é representa risco à saúde. “A restrição desnecessária leva a estigmas nutricionais, psicológicos e sociais”, diz a médica Renata Cocco, integrante do Departamento Científico de Alergia Alimentar da Asbai. O segredo, mais uma vez, está em acertar o diagnóstico para não incluir alimentos que provocam reações e tampouco tirar do prato a comida certa. Mas há um ponto em torno do qual parece não haver mais hesitação: os bebês não são tão frágeis assim. Eles podem comer mais do que imaginamos.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780