Nova pesquisa mostra que metade das doenças raras tem tratamento
Há mais esperança quando o diagnótico é feito precocemente — o desafio ainda é o acesso
Famosa pela trilha do filme Titanic, a canadense Céline Dion, de 55 anos, comunicou ao público, no fim de 2022, ter sido diagnosticada com a síndrome da pessoa rígida, um distúrbio neurológico raro que a impede de voltar aos palcos. A cantora sofre com espasmos involuntários e rigidez muscular, que afetam os movimentos até das cordas vocais. Em meados de dezembro, a irmã da artista, Claudette, atualizou os fãs: o tratamento não estaria surtindo efeito, frustrando a perspectiva de uma volta à ativa. Disse ela: “A incidência da doença é de um caso em 1 milhão de pessoas e, como não afeta muita gente, os cientistas não pesquisam”.
No Brasil, estima-se que 13 milhões de pessoas apresentem uma entre 7 000 diferentes tipos de doenças raras — a maioria delas com manifestações ainda na infância. Em comum, essas disfunções têm origem genética e uma evolução incapacitante — algumas levam à morte. Outro ponto que as coloca no mesmo barco é a dificuldade de diagnóstico precoce e de acesso a um tratamento adequado.
Não deveria ser assim. Há, felizmente, bons movimentos. Uma pesquisa brasileira traz esperanças aos pacientes e famílias que convivem com esses quadros. O trabalho, conduzido pelo Grupo Fleury em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), confirma que, se detectada na infância, a doença rara pode ser tratada e, em boa parte dos casos, não impedirá a pessoa de levar uma vida normal. O estudo foi realizado com 500 pacientes, entre crianças e adultos, com suspeita de terem algum distúrbio dessa família. Elas foram submetidas a um detalhado teste genético realizado no laboratório do grupo. Trata-se do exoma, um exame feito pelo sangue que identifica as variantes no DNA responsáveis por uma condição hereditária ou não. “Fechamos o diagnóstico de um terço dos casos”, diz o geneticista Caio Quaio, do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP, autor principal do trabalho. Desse total, metade recebeu tratamentos capazes de melhorar os sintomas e a rotina.
Em algumas situações, as terapias são até bem simples. Doença com nome complicado, a síndrome de Brown-Vialetto-Van Laere (conhecida pela sigla BVVL) causa epilepsia refratária e incapacidade mental ao longo dos anos. Como cada convulsão representa um dano cerebral, é urgente controlar a enfermidade cedo. Até porque basta fazer reposição da vitamina B2 para a criança se desenvolver saudavelmente. “No grupo estudado, encontramos um bebê com essa doença, que nasceu com um defeito no gene responsável pela produção da proteína que transporta a vitamina pelo corpo”, afirma Quaio. Nem sempre basta tomar algumas cápsulas por dia para resolver a questão, mas, após o mapeamento, os médicos conseguiram definir condutas para elevar a qualidade de vida dos pacientes. “Como o exame é muito abrangente, além de investigar o problema genético em si, podemos deparar com outros riscos importantes, caso de disfunções no fígado”, diz Wagner Baratela, head de genética do Fleury.
Desde o início do sequenciamento do genoma humano, em 1990, a ciência traça caminhos para trazer à realidade a medicina de precisão, capaz de identificar doenças e selecionar tratamentos mais assertivos de acordo com o DNA. “Atualmente, centros internacionais desenvolvem estudos que avaliam dessa forma todos os bebês nascidos”, afirma Baratela. Das crianças saudáveis analisadas, 10% possuem alguma doença que ainda não se manifestou. O exame do exoma é complementar ao teste do pezinho, a triagem neonatal que faz uma varredura para doenças genéticas e está presente na rede pública — a nova tecnologia, porém, ainda não foi incorporada ao SUS.
A pedagoga paulistana Tatiana Tambalo Florido, de 45 anos, começou sua peregrinação em busca de tratamento para o filho Artur, então com 2 anos, em 2013. O menino tinha sintomas de autismo, mas não respondia aos tratamentos. Depois do exoma, há quatro anos, veio o diagnóstico: síndrome de Vulto-Van Silfhout-de Vries. “Conseguir um diagnóstico é o mais desafiador”, diz a senadora Mara Gabrilli, presidente da Subcomissão de Direitos das Pessoas com Doenças Raras do Congresso. Neste mês, ela lançou uma cartilha com um alerta: no sistema público, pior do que a falta de exames modernos é a carência de geneticistas na linha de frente. Zelo como o de Mara é fundamental para que vidas não sejam condenadas por uma doença inscrita no DNA.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874