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“O câncer me tirou a voz”: o relato da publicitária Melissa Medeiros

Aos 48 anos, ela descreve as dificuldades de viver sem falar

Por Melissa Medeiros
Atualizado em 4 jun 2024, 14h41 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00
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  • O último registro que tenho da minha voz é do vídeo do meu casamento, em 2009. Exatamente um ano depois, comecei a perceber que algo não estava bem. Passei a sentir um desconforto na garganta, engasgava-me e tossia com frequência, sem motivo aparente. Minha voz sempre foi grave e rouca, mas nessa época a rouquidão aumentou muito. Como eu trabalhava com marketing, campanhas e vendas, fiquei apavorada. Como trabalharia sem voz? Fui aconselhada a procurar um especialista. Depois de alguma peregrinação recebi o diagnóstico real: câncer na laringe. Hoje sei que esse tipo de tumor poderia ser resolvido com uma cirurgia simples, com alta taxa de cura. Mas os médicos optaram por um protocolo que não funcionou. No início, fiz quimioterapia e radioterapia. Mas, em vez de o tumor diminuir, ele dobrou de tamanho, o que me obrigou a retirar totalmente a laringe. E passei a ter um buraco permanente na traqueia. Isso significa, além de ter perdido a voz totalmente, precisar respirar por um buraco alternativo para o resto da vida. Pensei em desistir de tudo, mas tive muito apoio do meu marido, filho e familiares.

    Foram doze horas de cirurgia de alto risco. O pós-operatório é difícil e doloroso. Por seis meses eu não consegui comer pela boca. Tive depressão, fiz uso de medicações e, sem poder me expressar, de fato foi muito terrível e excludente. A gente não se dá conta de quão importante é a voz até perdê-la. Escrevia durante as consultas para ser compreendida pelos médicos, e em casa os mais íntimos se esforçavam para me entender por meio de sons. Depois da cirurgia, tive várias complicações que exigiram novas intervenções. Foi tudo muito penoso, do ponto de vista físico e psicológico. Já não estava mais dando conta. Demorei mais de três anos para usar a laringe eletrônica, pois meu pescoço estava rígido demais, e eu não conseguia utilizar o equipamento sem sentir dor. Com o tempo, depois de muito treinamento, passei a articular melhor a boca e fazer uso do equipamento. Mas não utilizo esse aparelho todo o tempo. Ele me causa tosse, zumbido no ouvido e incômodo no pescoço.

    Minha condição me limita em vários aspectos. Não posso estar em um local com muitas pessoas nem com ar condicionado por muito tempo porque estou mais vulnerável a epidemias. Não posso entrar no mar nem na piscina. Para tomar banho, preciso usar uma proteção, senão a água entra dentro dos pulmões e eu morro afogada. Não posso comer alimentos muito secos nem em pedaços muito grandes. De uns tempos para cá, meu filho me incentivou a interagir nas redes sociais. Tive certa relutância no começo, mas isso me ajudou. Eu ainda tinha meu intelecto e a vontade de ajudar outras pessoas que passaram ou passariam por isso. Notei que, mesmo com a dor imensa, tinha certos privilégios. Era uma exceção em comparação com o restante da população. Tive apoio da família, atendimento em rede particular e acesso à laringe eletrônica e ao filtro de ar, equipamentos caros. Eu me juntei a outros pacientes e fundamos a Associação de Câncer de Boca e Garganta, com sede em Florianópolis, onde moro. Aprendi com eles que não sou melhor nem pior do que ninguém. Ainda tenho recaídas. Claro que não é fácil. Há poucos dias, achei umas fitas com a minha voz, em que cantava com minha irmã, e chorei muito, de saudade da minha verdadeira identidade. Mas, ao mesmo tempo que sinto falta, lembro de tudo o que passei e sofri para estar viva e agradeço a Deus a oportunidade de, mesmo sem voz, poder ser a voz de tantas pessoas que são invisíveis à sociedade. Sabe a famosa reviravolta na vida? Eu dei. E isso só acontece com muito esforço e determinação.

    Depoimento dado a Giulia Vidale

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    Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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