No campo da saúde, o termo “mecanicismo” refere-se à ideia de que entender a ação do medicamento e a biologia da doença basta para guiar a prática clínica. O mecanicismo sugere que, ao compreender como um fármaco atua no corpo – por exemplo, como ele se liga a determinadas moléculas ou interfere em uma via metabólica –, seria possível prever seus efeitos terapêuticos e possíveis efeitos colaterais.
Essa linha de pensamento leva à conclusão de que, tendo o domínio do conhecimento mecanicista disponível, seria possível prever todos os desfechos disponíveis de uma determinada intervenção, sem a necessidade, por exemplo, de ensaios clínicos. Mas trata-se de uma conclusão falsa.
A abordagem mecanicista pode se tornar uma armadilha perigosa. Embora entender os mecanismos seja crucial para o desenvolvimento de novos medicamentos e para a compreensão de como eles podem atuar no organismo, confiar unicamente nesse conhecimento para orientar tratamentos pode levar a erros e consequências negativas.
Por exemplo, saber que um medicamento “bloqueia” um receptor específico pode sugerir que ele seja eficaz para certas condições; entretanto, sem a evidência de ensaios clínicos rigorosos, não podemos ter certeza de que essa intervenção é segura ou eficaz em pacientes reais. Infelizmente, muitos profissionais de saúde e influenciadores digitais constroem seus perfis e atuam com seus pacientes dessa maneira.
Importância dos ensaios clínicos
Como farmacologista – ou seja, alguém que se dedica a estudar profundamente os mecanismos dos fármacos –, também demorei a compreender essa nuance. Há uma crença disseminada, mesmo entre profissionais, de que o entendimento dos mecanismos poderia guiar decisões clínicas de forma direta. Por exemplo, considere o uso de suplementos “antioxidantes”, como a vitamina E. Com base em um raciocínio mecanicista, muitos acreditam que, por seu papel em “neutralizar” radicais livres, esses suplementos poderiam prevenir doenças cardiovasculares, ou mesmo o câncer, condições em que o estresse oxidativo é um fator contribuinte.
No entanto, quando submetida a ensaios clínicos rigorosos, essa suplementação não apenas falhou em mostrar benefícios claros, como em alguns casos acabou associada a um aumento na mortalidade de pacientes. Esse tipo de resultado contraditório entre ensaios clínicos e o determinismo mecanicista mostra que confiar exclusivamente em mecanismos pode ser inadequado e potencialmente prejudicial. Aquilo que parece biologicamente plausível pode não se traduzir em resultados clínicos positivos.
Considere um exemplo ainda mais drástico e emblemático: o uso da flecainida, um fármaco antiarrítmico, isto é, contra arritmias do coração. Nos anos 1980, a comunidade médica acreditava que suprimir arritmias após um infarto do miocárdio poderia reduzir o risco de morte súbita. Sabia-se que arritmias ventriculares frequentemente precediam esses eventos fatais. A flecainida, que age bloqueando canais de sódio nas células cardíacas, parecia ideal para essa tarefa. Mecanicamente, fazia sentido: ao estabilizar a atividade elétrica do coração e suprimir as arritmias, isso deveria reduzir, consequentemente, o risco de complicações fatais.
Com base nesse raciocínio mecanicista, a flecainida foi amplamente prescrita para pacientes pós-infarto com arritmias ventriculares. No entanto, estudos clínicos posteriores, como o famoso estudo CAST (Cardiac Arrhythmia Suppression Trial), revelaram uma realidade alarmante: em vez de reduzir a mortalidade, o uso de flecainida estava associado a um aumento significativo no risco de vida. O estudo teve que ser interrompido precocemente devido ao número elevado de mortes no grupo tratado com flecainida.
Embora a flecainida fosse eficaz em suprimir as arritmias, descobriu-se que ela também tinha efeitos pró-arrítmicos em alguns pacientes, especialmente aqueles com dano cardíaco subjacente, devido ao infarto. Em outras palavras, o medicamento poderia estar prevenindo arritmias benignas, enquanto desencadeava arritmias perigosas. Historicamente, o episódio da flecainida é um exemplo de como o entusiasmo inicial, baseado em fundamentos teóricos, pode ser desastroso sem o apoio de evidências de estudos clínicos adequados.
Considerando o que discutimos até aqui, conhecer os mecanismos fisiológicos e farmacológicos seria inútil? De jeito nenhum. Tão importantes quanto o pragmatismo das probabilidades que mostram se algo funciona ou é seguro são os “porquês” e os “comos” por trás desses efeitos. Eles são valiosos quando usados de forma adequada. Para ilustrar isso, criei o acrônimo PREDICT (afinal, tentamos usar os mecanismos para “prever” desfechos e nos anteciparmos):
- (P)lausibilidade: Os mecanismos biológicos ajudam a avaliar se uma intervenção médica faz sentido ou não. Para entender melhor, pense nos antibióticos, como a azitromicina. Antibióticos são medicamentos projetados para combater infecções causadas por bactérias, que são organismos vivos. Eles funcionam atacando partes específicas das células bacterianas, como a parede celular ou as proteínas que as bactérias precisam para se multiplicar e sobreviver. Agora, considere uma infecção viral, como a gripe ou o resfriado comum. Vírus são muito diferentes de bactérias. Portanto, é biologicamente implausível – ou seja, não faz sentido com base no entendimento de como as coisas funcionam, no nível celular – que um antibiótico como a azitromicina consiga tratar uma infecção viral.
- (R)isco: Estudos em células e animais fornecem dados iniciais sobre toxicidade. Essa etapa é essencial porque, por razões éticas, não podemos expor seres humanos a substâncias que não foram previamente avaliadas quanto à segurança. Além disso, certos efeitos colaterais só podem ser observados em organismos inteiros, não apenas em células isoladas. Os estudos em animais, portanto, oferecem uma visão inicial sobre como um corpo vivo pode reagir ao medicamento, ajudando a identificar possíveis riscos antes de avançar para os ensaios clínicos em humanos.
- (E)xplicação: Ainda que os mecanismos não garantam eficácia ou segurança, eles podem explicar por que certos efeitos ocorrem. Por exemplo, ensaios clínicos demonstram que a sinvastatina, um medicamento utilizado para reduzir o colesterol, diminui o risco de eventos cardiovasculares. O mecanismo de ação da sinvastatina envolve a inibição da enzima HMG-CoA redutase, essencial na síntese de colesterol no fígado. Essa inibição leva a uma redução nos níveis de LDL (“colesterol ruim”) no sangue, o que ajuda a prevenir o acúmulo de placas nas artérias, reduzindo, assim, o risco de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais. Embora o efeito benéfico tenha sido demonstrado clinicamente, entender o mecanismo ajuda a explicar por que a sinvastatina é eficaz em certos contextos e como ela atua no organismo.
- (D)edução: O conhecimento dos mecanismos de ação dos medicamentos ajuda os profissionais de saúde a deduzir a causa de certos efeitos colaterais e a tomar decisões clínicas informadas. Por exemplo, considere um paciente que esteja usando antidepressivos tricíclicos, uma classe de medicamentos frequentemente prescrita para tratar depressão. Além do seu mecanismo terapêutico, esses medicamentos afetam outros receptores no organismo, como os chamados receptores alfa-1, que estão envolvidos na regulação da pressão arterial. Se esse paciente começa a sentir tontura ou desmaiar ao se levantar rapidamente, isso pode ser um sinal de hipotensão postural — uma queda súbita na pressão arterial ao mudar de posição. Sabendo que os antidepressivos tricíclicos bloqueiam os receptores alfa-1, que ajudam a manter a pressão arterial estável, o prescritor pode deduzir que o medicamento é a provável causa desses sintomas. Com base nesse raciocínio dedutivo, o profissional de saúde pode decidir ajustar a dose do medicamento, mudar para um antidepressivo diferente ou recomendar outras estratégias.
- (I)nterações Medicamentosas: Conhecimento dos mecanismos é crucial para entender como diferentes medicamentos podem interagir entre si, e evitar combinações perigosas. Imagine um paciente que está tomando um anticoagulante. Se esse paciente também começa a tomar um anti-inflamatório não esteroidal (AINE) – como aspirina para dor -, os dois medicamentos juntos podem aumentar significativamente o risco de sangramento. Isso acontece porque ambos afetam o sistema de coagulação: o anticoagulante diminui a capacidade do sangue de coagular, enquanto o AINE pode causar irritação gástrica e redução da capacidade agregadora plaquetária, aumentando o risco de sangramento gástrico. Conhecendo esses mecanismos, o profissional de saúde pode evitar prescrever esses medicamentos juntos ou tomar precauções adicionais.
- Hipóteses (C)línicas: O conhecimento dos mecanismos biológicos e farmacológicos é um ponto de partida importante para formular hipóteses diagnósticas ou científicas que podem orientar pesquisas e investigações clínicas mais aprofundadas. Quando os profissionais de saúde entendem como um medicamento funciona no corpo ou como uma doença se desenvolve, eles podem usar essas informações – por exemplo, para levantar novas perguntas sobre quais exames irá solicitar para se aprofundar na investigação.
- Vocabulário (T)écnico: Ter um bom conhecimento de farmacologia (o estudo dos medicamentos e seus efeitos) e fisiologia (o estudo de como o corpo funciona) é crucial para entender a literatura científica e interpretar informações de maneira precisa. Conhecer o vocabulário técnico ajuda profissionais de saúde a entender detalhes importantes sobre como as intervenções em saúde funcionam e como afetam o organismo humano.
Em resumo, há um espaço importante tanto para o conhecimento aplicado e probabilístico quanto para o conhecimento básico e mecanicista, mas somente quando usados para as finalidades corretas. Como afirmou Richard Feynman: “A realidade deve ter prioridade sobre as relações públicas, pois a natureza não pode ser enganada”. Devemos nos guiar pelo que a ciência nos revela sobre a realidade, lembrando que, na área da saúde, os dados clínicos e a prática baseada em evidências são o principal norte. O entendimento dos mecanismos pode enriquecer, mas não substituir, a evidência empírica na orientação de condutas clínicas.
* André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros “Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades” e “50 Casos Clínicos em Farmacologia” (Sanar), “Porque sim não é resposta!” (EdUFABC), “Tarot Cético: Cartomancia Racional” (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?…e o que não é. (Editora Contexto). O artigo foi publicado originalmente na Revista Questão de Ciência, do Instituto Questão de Ciência.