Faz só um ano, e parece uma eternidade. O presidente Jair Bolsonaro divulgara um vídeo convocando a população a apoiá-lo em uma série de manifestações contra o Congresso Nacional, programadas para dali a vinte dias, em 15 de março. As primeiras páginas dos jornais publicaram a foto do humorista Marcelo Adnet, destaque da escola de samba São Clemente, na pele do capitão que ocupa o Planalto, com o ridículo gesto da arma nas mãos. Na véspera, a Viradouro atravessara a Sapucaí com pinta de campeã, ao contar a história das lavadeiras da Lagoa do Abaeté, em Salvador. Em um dos camarotes da avenida, a atriz Malu Mader temia pelo fracasso de Regina Duarte na Secretaria de Cultura. Roberto Carlos levava ao delírio milhares de fãs a bordo do navio MSC Fantasia, atracado em Búzios. A Amazon abria seu primeiro supermercado sem caixas nos Estados Unidos. Donald Trump não parava de tuitar. Íamos ao cinema para ver Minha Mãe é uma Peça 3. E, então, como senha para o início de um novo tempo, na noite da terça-feira 25, o Ministério da Saúde anunciou a descoberta do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. Na sua edição, VEJA daria capa com uma chamada forte: “Ele está entre nós”.
Aquele 25 de fevereiro, terça-feira gorda de Carnaval, hoje é história, capítulo inicial de uma Quarta-Feira de Cinzas que se estenderia por doze meses infindáveis, e ainda está entre nós — e, não por acaso, a festa de 2021 nas ruas e nos clubes foi cancelada, triste e necessariamente. Naquele dia de 2020, a diretoria do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, avisou as autoridades de que, na segunda-feira 24, um homem de 61 anos, J.C.F.C, que chegara três dias antes de uma viagem a trabalho na Lombardia, no norte da Itália, com embarque em Milão e conexão em Paris, fora ao pronto-socorro da instituição paulistana com sintomas típicos de Covid-19 — tosse seca, febre, dor de garganta e coriza. Com resultado positivo, anunciado a uma bióloga por WhatsApp, ele fora liberado para isolamento doméstico e rigoroso acompanhamento do estado clínico. O mundo contabilizava então 2 834 mortes em decorrência do vírus, 2 747 delas na China, e 82 329 casos. Hoje são 2,4 milhões de mortes, das quais mais de 240 000 no Brasil, e pelo menos 110 milhões de casos globais. Há um ano, de modo a acompanhar os primeiros passos hospitalares depois do susto inicial, no Brasil, a reportagem de VEJA esteve no coração do Albert Einstein, mergulhado em um dia a dia de responsabilidade e drama — voltou agora para descrever os avanços de tratamento e as mudanças de protocolos, com muito mais compreensão do vírus, mas colossal pressão imposta por um ano extenuante na luta contra o inimigo invisível. O novo cotidiano do Einstein que VEJA registra ajuda a trilhar uma aventura humana ancorada na ciência que poderia receber o seguinte título: “Pandemia, ano 2”. “O surto não está sendo um marco apenas para o Einstein”, diz Sidney Klajner, presidente da instituição. “Mudou profundamente a forma de trabalhar e as reações emocionais dos profissionais de saúde em todo o país.”
Na história oficial da chegada do novo coronavírus ao Brasil, caberá sempre espaço para um personagem central, o infectologista Fernando Gatti, 44 anos. Foi ele quem suspeitou estar diante do primeiro caso de infecção e quem, depois da alta, nunca mais abandonou os laços de amizade e carinho com o paciente zero. Os dois estabeleceram uma relação de extrema confiança. O executivo, que desembarcara da Itália, e que nunca quis se expor publicamente, procura o médico com frequência para discutir e tirar dúvidas a cada nova notícia sobre a infecção. O peso de estar no coração da pandemia desde o princípio foi avassalador na vida de Gatti. O movimento de seu consultório aumentou 150% ao longo do ano. As mensagens de pacientes e colegas em busca de informações sobre a doença passaram a piscar no celular dia e noite, sem parar. Em um ano, engordou 10 quilos e conviveu muito pouco com o filho de 3 anos. Foi diagnosticado com a chamada síndrome de Burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, distúrbio provocado pela exaustão extrema, sempre relacionada ao trabalho. A percepção veio quando começou a sentir um cansaço crônico e ter ataques de choro sem motivo palpável. Parou por dez dias, foi tratado com antidepressivos, e terminou por voltar em ritmo igual. Atendeu pacientes na véspera e nos dias de Natal e Ano-Novo. “Começamos praticamente do zero e com extrema dedicação, mas estamos conseguindo mudar o percurso da Covid-19”, diz ele.
A figura de Gatti, o pioneiro, é espelho de uma engrenagem incansável do Einstein — a de atenção com os cuidados terapêuticos e a absorção de novidades na briga contra a pandemia. O Einstein é simultaneamente vetor de descobertas e esponja de reputados estudos internacionais. Pelo menos cinquenta especialistas, entre médicos, biólogos, farmacêuticos e equipes de enfermagem, foram designados a ler, traduzir e compilar artigos científicos sobre o vírus — num total de estrondosos 30 000 trabalhos esmiuçados. Dentro de duas semanas, a nova empreitada será a participação nos testes de uma vacina, a Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, com aplicação de doses em 3 600 voluntários. Outros dois imunizantes devem também entrar para o rol de pesquisas do hospital. Desse modo, o Einstein sabe fazer parte de um movimento único na história da medicina moderna, no qual foram investidos globalmente 20 bilhões de dólares em 61 países, na lida com oito vacinas já sendo injetadas e outras dezesseis em fase de investigação final. É corrida que parece estar refletida permanentemente nos vidros e corredores de uma organização de saúde pega no olho do furacão.
Aprende-se a cada minuto, de uma ponta a outra da doença, da contaminação às terapias. Já não há, entre os orgulhosos profissionais de jaleco do Einstein, o receio dos dias iniciais. “Quando chegava um paciente com Covid-19, pensávamos que invariavelmente seríamos contaminados pelo vírus”, diz o infectologista Moacyr Silva, 47 anos, na linha de frente do atendimento de doentes contaminados, que foi capa de VEJA em 2020. “Com o tempo, percebemos que a paramentação correta reduz o risco ao mínimo.” As incertezas iniciais em torno da proteção mais primária chegaram a ser estimuladas até mesmo pela própria Organização Mundial da Saúde, que minimizou por um bom tempo a importância do uso de máscaras — e, sabe-se hoje, portá-las é tão imprescindível quanto manter o distanciamento social. Os equipamentos de segurança do Einstein são usados, acertadamente, à profusão. Os números são homéricos. Em um ano, foram quase 11 milhões de máscaras utilizadas, entre as cirúrgicas simples e a mais recomendada, a já famosa N95. Até agora, o Einstein registrou 3 351 profissionais da saúde infectados, o equivalente a 20% do total, quase a metade da média global. Entre eles, ressalve-se, o próprio Moacyr Silva — que, atrelado à modéstia dos grandes, ainda assim insiste em celebrar o pequeno risco de quem se protege adequadamente.
Os obstáculos a que foram submetidos heróis como ele, e não há exagero em tratá-lo desse modo, resultaram em vitórias. Os bons frutos decorrentes dos esforços médicos podem ser contabilizados, um ano depois. Hoje, no Brasil, a taxa de mortes é de 2,65% dos infectados e a de pessoas recuperadas de 97,35%. No longínquo mês de março, a proporção era outra: 38,72% de recuperação e 61,28% de mortalidade (veja o quadro). Um dos grandes motores dessa inversão foi o entendimento de se estar lidando com uma doença que vai além de um problema respiratório e pulmonar. O novo coronavírus ataca vários órgãos do corpo, em especial o cardiovascular. Estudo publicado na revista Jama Cardiology identificou a presença do microrganismo no músculo cardíaco em 60% das vítimas autopsiadas. O vírus aumenta o risco de trombose, coágulos que se formam dentro de um vaso. “Quatro em cada dez mortes por Covid-19 são em decorrência de complicações cardíacas”, diz Ludhmila Hajjar, professora de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e intensivista da Rede D’Or. Era informação até há pouco tempo desconhecida. O controle cardíaco é, portanto, atalho para remissões mais rápidas e consistentes.
Descobriu-se também que o vírus provoca muitas vezes uma reação do sistema imunológico exagerada e isso faz com que o organismo crie uma intensa atividade inflamatória, difícil de controlar. Os corticoides, potentes anti-inflamatórios são agora introduzidos nos tratamentos, capazes de acalmar o processo e reduzir o número de mortes em 30%. Foi crucial, ainda, o investimento na redução do tempo de resultado dos testes de rastreamento de Covid-19. O mais elaborado deles, o chamado PCR, considerado o padrão ouro no diagnóstico da doença, chegou a demandar um prazo de dez dias para entregar resultados. “Hoje, totalmente automatizados, exigem somente dois dias, e logo será apenas um”, diz João Renato Rebello Pinho, coordenador do Laboratório de Técnicas Especiais do Einstein.
Há entusiasmo, depois de tanta descrença, mas há ainda um bom caminho pela frente rumo ao fim da pandemia, e as curvas atuais no Brasil impõem cautela. “Estamos quase empatando o jogo contra o vírus”, diz Luiz Vicente Rizzo, diretor superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa do Einstein. “E, quando isso ocorrer, será uma questão de muito pouco tempo para vencê-lo de vez”. As novas variantes estão entre os desafios para a ciência. Ainda não há consenso se são mais ou menos letais, mas sabe-se que aumentam o número de reinfecções, como se verificou em Manaus, origem de uma das mutações recentes do novo coronavírus. Pesquisa publicada na revista Science mostrou que cerca de 80% da população da capital amazonense já tinha anticorpos da doença e, mesmo assim, parte dela se reinfectou com a nova variante. A questão: vacinas serão eficazes contra elas? Muito provavelmente sim, é o que indicam trabalhos recentes. Todos os vírus mudam seu material genético, e na maioria das vezes as mutações não conferem vantagens nem desvantagens, são meras consequências aleatórias e naturais. O agente da gripe, por exemplo, tem uma taxa de mutação que é o dobro em relação às identificadas no novo coronavírus. A do HIV, quatro vezes maior. Estima-se que as vacinas para Covid-19 tenham de ser reformuladas a partir de 2022 — mas não agora. Não há aí nenhum grande susto. Todo ano os antígenos para gripe têm de ser modificados. “Até o próximo ano, a eficácia dos imunizantes atuais será suficiente para reduzir dramaticamente o número de mortes, casos graves e hospitalizações”, diz Salmo Raskin, geneticista da Sociedade Brasileira de Genética Médica que participou da equipe internacional do Projeto Genoma Humano.
A pandemia virou o ano vivíssima, assusta, mas já não pode ser resumida ao espanto e imprevisibilidade dos tempos inaugurais, quando um profissional como Fernando Gatti começou a enfrentar o desconhecido, e teve de vencê-lo na marra. A melhor imagem atual talvez seja a de seu sorriso largo, embora tímido, na terça-feira 16, ao exibir o registro de vacinação com a CoronaVac do Butantan. Assim, de maneira esperançosa, ancorada nas certezas científicas, começa o segundo ano da pandemia.
Colaborou Giulia Vidale
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Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726