Por ‘ansiedade climática’, os jovens estão optando por não ter filhos
Sob impacto dos riscos do aquecimento global, uma nova mentalidade se impôs: para as novas gerações, o futuro passou a ser um ponto de interrogação
Os riscos acarretados pelo aquecimento global foram, durante muito tempo, vistos pela maior parte das pessoas como um problema a ser enfrentado por seus netos, talvez bisnetos. Faltou combinar com os vilões do clima. Apressadas pela inação dos governos e pela apatia das populações, as mudanças climáticas ganharam força e se puseram a incendiar florestas, derreter geleiras, inundar cidades e cravar temperaturas inclementes com fúria devastadora. Diante desse cenário, uma nova mentalidade se impôs: para as novas e novíssimas gerações, o futuro passou a ser um ponto de interrogação. A consequência mais impactante da chamada “ansiedade climática” que acomete boa parte dos jovens no mundo todo é a pouca disposição para ter filhos, seja pela sobrecarga ambiental de colocar mais um indivíduo no planeta, seja pela insegurança sobre como e em que condições criar a criança. Essa tendência, somada ao envelhecimento populacional já evidente na Europa e previsto para se repetir em muitos países, preconiza uma chacoalhada demográfica de grandes proporções — com o Brasil possivelmente formando a linha de frente.
A projeção foi reforçada por uma pesquisa sobre ansiedade climática realizada pelas universidades Stanford, na Califórnia, e de Helsinque, na Finlândia, em conjunto com mais cinco instituições. Segundo o estudo, que ouviu 10 000 pessoas entre 16 e 25 anos em dez países, 48% dos brasileiros disseram que as mudanças climáticas afetam negativamente a intenção de ter filhos — a maior proporção da lista, bem acima da média de 39% entre as nacionalidades pesquisadas (veja o ranking abaixo). “Nota-se na juventude um despreparo emocional para assumir compromissos de longo prazo, um medo de não dar conta do recado”, observa Tatiana Carvalho, professora de psicologia da PUC-Rio.
Uma fartura de previsões e estatísticas tem contribuído para elevar o nível de preocupação dos jovens com o futuro do planeta, sendo a mais recente delas um relatório da Organização Mundial da Saúde alertando sobre o fato de que as mudanças no clima “constituem o maior risco à saúde que a humanidade tem pela frente”, pelo potencial de danos e mortes causados por ondas de calor, excesso de chuvas, desabastecimento, doenças e problemas mentais. “As mesmas escolhas insustentáveis que estão matando nosso planeta também estão matando as pessoas”, afirmou o diretor da OMS, Tedros Ghebreyesus. É o tipo de advertência que abala casais como Anderson Resende, 21 anos, e Thaiane Maciel, 28, quando o assunto é ter filhos. “Não tenho segurança de que as coisas podem melhorar e seria egoísta da minha parte criar alguém em um lugar que não é bom”, argumenta Resende, estudante de engenharia nuclear na UFRJ. “Quanto mais esses eventos extremos se tornam frequentes, mais preocupada eu fico”, acrescenta Thaiane, engenheira ambiental. “Os fenômenos climáticos despertam uma sensação de incerteza que se espalha pelas novas gerações”, confirma a psicóloga clínica Fabiana Esteca, especialista em casais e famílias.
O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão ligado à ONU, mostra que os fenômenos climáticos extremos vão avançar, com temperaturas mais altas e secas intensas e prolongadas. “A atmosfera muda em uma velocidade mais rápida que há duas décadas, sinal de que temos de agir rapidamente”, afirma o climatologista Carlos Nobre. Alguns dos impactos sobre o clima levarão séculos para ser totalmente revertidos, como a elevação do nível do mar e a maior acidez das águas. O choque pode ser ainda mais sentido nos países tropicais, como o Brasil, onde as temperaturas já são bastante altas. O Acordo de Paris, um compromisso mundial para conter as alterações climáticas firmado em 2015 por quase 200 países, pretende impedir um aumento de 2 graus na temperatura global, mas o mundo caminha para ultrapassar a barreira de 1,5 grau uma década antes do previsto.
Na mesma linha de desastres anunciados, o consumo de recursos da natureza é 74% maior do que ela é capaz de recuperar, o que significaria que seria preciso 1,7 planeta Terra para manter o estilo de vida atual, ou três Terras até 2050, de acordo com a projeção do Banco Mundial. Outro estudo, conduzido em 2017 por pesquisadores da Universidade de Lund, na Suécia, dá o clima, com o perdão do trocadilho, das aflições modernas: ele concluiu que uma criança a menos no planeta contribui para reduzir o nível médio de dióxido de carbono na atmosfera em 58,6 toneladas por ano, muitíssimo mais do que as outras três opções analisadas: viver sem carro (menos 2,4 toneladas), evitar viagens aéreas (menos 1,6 tonelada) e adotar uma dieta vegetariana (menos 0,8 tonelada). Namorados há quatro anos, Maria Luiza Pizzatto, 24 anos, e Raphael Thomé, 23, ambos estudantes de cinema na Califórnia, levam fatores como esses em conta na vida sustentável a dois que pretendem levar. “Tentamos fazer nossa parte. Nós nos tornamos veganos e não queremos ter filhos, pois sabemos que isso aumentaria a pegada de carbono e contribuiria para o colapso mundial”, diz Maria Luiza. “Se em algum momento quisermos ser pais, pretendemos adotar. Assim estaremos ajudando não só o planeta como também a criança”, completa Thomé.
Ao preferir não ter filhos, as novas gerações agravam as consequências da queda persistente nas taxas de natalidade que o Brasil vem registrando. O saldo de nascimentos no país acusou uma diminuição de 6% entre 2016 e 2020, de acordo com a Arpen Brasil. O número de casais com crianças, por sua vez, reduziu-se em 2,6% de 2014 para 2019, último dado disponível nas estatísticas do IBGE. No mesmo período, os casais sem filhos se tornaram bem mais comuns, com uma subida de 16,5% no período (veja o gráfico acima). “Uma das características destes tempos é a grande variedade de modelos de família, o que é bom, visto que um dos imperativos das próximas décadas será desenvolver novos parentescos com pessoas que não são consanguíneas”, antecipa o professor de ciências sociais Matthew Schneider-Mayerson, da Universidade Yale-NUS, em Singapura. Pelo jeito, não são só os fenômenos climáticos que seguem em ritmo acelerado. Na esteira das mudanças trazidas por eles, o fim da sociedade tal qual a conhecemos também parece estar cada vez mais perto.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2021, edição nº 2760