Cheiros influenciam a habilidade humana de perceber visualmente e julgar corretamente as emoções de outras pessoas – mesmo que o afetado pelo odor não tenha consciência de sua presença. Fruto da pesquisa de mestrado de Matheus Henrique Ferreira, atualmente doutorando do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), um artigo com medições detalhadas desse efeito foi publicado na revista PLOS ONE.
“Se estou submetida a um cheiro agradável, minha percepção da emoção agradável melhora”, diz Mirella Gualtieri, doutora em neurociências e comportamento e professora de psicologia experimental do IP-USP. “O mesmo acontece com os odores desagradáveis, que aprimoram o discernimento de medo e nojo”, explica a cientista, orientadora de Ferreira.
A equipe de pesquisa partiu da premissa de que o estímulo de cheiro tem a característica peculiar de quase sempre estar conectado a um julgamento de agradabilidade. “Podemos ser confrontados com muitas cenas visuais e não necessariamente vamos classificá-las como algo que gostamos ou não de ver, mas frequentemente a única coisa que um indivíduo consegue descrever sobre um determinado cheiro é se é gostoso ou ruim”, afirma Gualtieri, que desenvolve pesquisa aplicada em psicologia sensorial.
Usando essa premissa, o grupo detalhou seu desenho experimental com o objetivo de avaliar como estar submetida a um ambiente em que existe um cheiro agradável ou desagradável pode afetar a forma como uma pessoa avalia as emoções que vê nas outras. Gualtieri ressalva que não se trata de um experimento inédito: “Avaliação de expressões emocionais nas faces das pessoas é uma coisa bem antiga, o que a gente tem de interessante, e poucos estudos têm isso, é que não utilizamos expressões de emoções muito fortes. O pessoal nessa área geralmente trabalha com feições que não são muito comuns no dia a dia. Alegria, tristeza, raiva são retratadas de modo quase estereotipado ou caricatural e não é assim que a gente transmite emoções no cotidiano”.
No experimento foram usadas imagens que retratavam um gradual de emoções. Rostos caricaturais, que expressavam, por exemplo, alegria ou tristeza extremas (classificados como gradiente 100%), foram misturados com uma face neutra. Assim, foram criadas gradações de 10% em 10% de um determinado conteúdo emocional. Em seguida, o grupo acompanhou como as pessoas avaliavam ou julgavam aquela emoção. Os voluntários olhavam para o rosto no desenho e diziam se ele expressava alegria, tristeza, raiva, nojo ou medo.
“Observamos o quanto de intensidade dessa expressão seria o mínimo para a pessoa começar a acertar a emoção que estava ali presente – sabemos que não precisa de 100%, mas queríamos saber qual era o valor mínimo –, e vimos que ficava geralmente em torno de 20% a 30% do teor total daquela emoção”, conta Gualtieri.
Determinado o limiar de intensidade de uma emoção que as pessoas precisavam para discriminá-la, foi avaliada a velocidade (tempo de reação) com que faziam esse julgamento. Por fim, foi observado como tudo isso poderia ser modificado com a presença de cheiros ruins ou bons.
“Nossa contribuição é mostrar como esse efeito entre as modalidades sensoriais acontece. Temos os nossos cinco sentidos, mas para que a gente se adapte ao meio, se comunique e consiga viver, é preciso que esses sentidos estejam interagindo. O que a gente mostra neste artigo é um exemplo de como isso pode acontecer”, diz Gualtieri. “A presença de um cheiro – e eu nem preciso necessariamente estar consciente de que ele está ali – vai afetar o meu processamento visual e o modo que eu atribuo emoções para o estímulo visual.”
Julgamentos individuais
Outro diferencial do experimento é que a qualificação de um cheiro como bom ou ruim foi determinada por cada participante, em vez de adotar convenções predefinidas. “Muitos trabalhos usam uma classificação categórica, ou seja, as pessoas vão necessariamente achar que cheiro de morango é gostoso e de chulé é ruim. Há esses rótulos pré-prontos, mas a gente sabe por experiência que principalmente com odor isso é muito complicado, nem sempre funciona. O que estava orientando nosso trabalho é o que a pessoa julgou, se era agradável ou desagradável para ela, e isso mudou muito nosso processo de análise comparando a quando usamos rótulo, assumindo que o cheiro tal era sempre ruim. Essa escolha mudou os nossos resultados de forma bem importante, então optamos que dali para a frente só iríamos nos basear no julgamento de agradabilidade que as próprias pessoas faziam.”
Os participantes – 35 pessoas, sendo 20 mulheres e 15 homens – não sabiam que o experimento era sobre olfato. Apenas eram informados de que seria mensurada sua rapidez em detectar quais emoções determinadas expressões faciais indicavam. “Não sabiam que tinha um cheiro. Sentavam na frente da tela e, na espuminha do headset que utilizavam, a gente colocava uma quantidade bem mínima de alguma substância [ácido butírico, com odor de manteiga rançosa; acetato de isoamila, odor forte similar ao de banana; ou capim-limão]. O participante fazia toda a sessão experimental, identificava as emoções, a gente via a taxa de acerto e os tempos de reação.”
Só quando essa parte estava concluída é que a equipe explicava que o objetivo era verificar se ter cheiros chegando ao nariz simultaneamente ao julgamento da emoção afetava o discernimento. Então os participantes apontavam em uma escala, por meio de um dial, para mostrar o quanto gostavam ou desgostavam do cheiro.
“Embora estudos anteriores tenham destacado o papel da valência hedônica dos cheiros no processamento emocional de estímulos visuais, existem vários outros fatores que possivelmente estão envolvidos. Este estudo demonstra que há um efeito bilateral importante envolvido entre os estímulos olfativos e visuais. Foi possível verificar que os cheiros influenciam na identificação de expressões faciais, assim como elas influenciam a reação emocional ao odor também”, comenta Patricia Renovato Tobo, gerente científica da Natura Inovação e Tecnologia de Produtos e coautora do artigo.
A pesquisa foi conduzida no âmbito do Centro de Pesquisa Aplicada (CPA) mantido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Natura no IP-USP entre 2016 e 2021. O trabalho também contou com a participação de Carla Barrichello, gerente de Ciências do Bem-Estar da Natura.