O início da imunização infantil contra a Covid-19 no país é mais uma mostra do triunfo da ciência. Agora, resta saber como ela vai mexer as peças do xadrez eleitoral
No fim da década de 70, oito meninos indígenas receberam do avô, o cacique Ahopoen Xavante, o Apoena, a missão de deixar Mato Grosso e ir para Ribeirão Preto, no interior paulista, de modo a conhecer a cultura dos brancos. Era a chamada Estratégia Xavante. Jurandir Siridiwê Xavante, um dos netos de Ahopoen, lembra que tudo era novo: a língua, os hábitos, a rotina. “Era como mandar a gente para a Lua e falar para se virar”, diz. Agora cacique, Siridiwê, de 54 anos, acompanha de longe a saga do filho, Davi Seremramiwe Xavante, na busca pelo diagnóstico de uma rara deficiência motora nas pernas. Em tratamento no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o garoto acabou de encarar uma enorme e bonita responsabilidade, aos 8 anos. Na sexta-feira 14, em São Paulo, Davi se tornou a primeira criança do Brasil a ser vacinada contra a Covid-19, doença que não poupa povo algum. “Senti alegria”, resume. “Fiz pela minha aldeia.”
A carinha meio apreensiva de Davi ao levar a injeção naquele momento histórico se transformou no símbolo de uma vitória inquestionável e de uma derrota memorável. O triunfo é o da ciência sobre o negacionismo. Depois de derrubarem as taxas de óbitos e de hospitalizações na pandemia, as vacinas começam a proteger os pequenos com igual eficiência e segurança, acabando com espaço para teorias malucas criadas pela ignorância. É cedo ainda para avaliar a real extensão dos benefícios a essa população, mas, a contar pelos números extraídos de estudos clínicos realizados para a aprovação da dose pediátrica do imunizante da Pfizer-BioNTech — aprovado para uso em crianças —, os resultados são de encher os olhos. Na quinta-feira 20, a área técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou a CoronaVac para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos. Além de evitar a evolução da doença para estágios graves, as vacinas podem ser aplicadas com total tranquilidade. Nos Estados Unidos, em um mês foram protegidos 8,7 milhões de crianças entre 5 e 11 anos de idade com a vacina da Pfizer. Um levantamento feito pelo Centro de Controle de Doenças mostrou que entre o contingente de imunizados houve o registro de somente 100 relatos de eventos adversos sérios. Apenas onze foram casos de inflamação do músculo cardíaco (miocardite), um dos mais graves, porém raros, eventos. Mesmo assim, sete crianças haviam se recuperado e quatro melhoravam. Houve duas mortes notificadas, porém sem associação com a vacina.
No Brasil, devem ser imunizados cerca de 20 milhões de crianças com idade entre 5 e 11 anos. Se a campanha é festejada pela parcela sensata dos brasileiros, para o presidente Jair Bolsonaro é sinônimo de derrota. Ele faz o que pode para atrapalhar o combate à pandemia. Um de seus alvos recentes é a vacinação de crianças, contra a qual diz ter estudos que apontariam a ineficiência. Não apresentou nenhum, até porque não existem. O contrário, sim. A pesquisa que sustentou a aprovação da dose pediátrica da vacina da Pfizer demonstrou eficácia de 90,7%. Os ensaios contaram com a participação de 2 268 crianças nos Estados Unidos, Finlândia, Polônia e Espanha. Os dados foram submetidos à análise das principais agências regulatórias do mundo. Por aqui, passaram pelo crivo dos técnicos da Anvisa. Aliás, repetindo um comportamento conhecido, na ocasião da aprovação da vacina para crianças pelo órgão brasileiro, Bolsonaro atacou os profissionais da agência, insinuando que eles teriam interesses não republicanos na liberação do produto. Balela. O episódio rendeu o conflito mais severo com o contra-almirante Antonio Barra Torres, diretor da agência. Indicado pelo presidente ao cargo, Barra Torres vem se destacando pela consistente oposição à obtusidade oficial que emana do Planalto. Sua resposta à fala de Bolsonaro foi exemplar. “Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, senhor Presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa (…)”, escreveu em longa nota. “Agora, se o senhor não possui tais informações ou indícios, exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate”.
Ao politizar a pandemia, Bolsonaro cria uma armadilha para si. Isolado, fala aos convertidos, e só. Nem seu antigo aliado, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, sai mais a público para criticar as vacinas. Ao contrário, agora as defende. O presidente, portanto, prega no deserto. A sociedade apoia as vacinas: quase 70% da população está completamente imunizada e mais de 80% dos pais pretendem levar os filhos aos postos de imunização. “Há uma cultura vacinal histórica no Brasil e nenhuma liderança é capaz de abalá-la”, afirma Mauro Paulino, diretor do Datafolha Instituto de Pesquisa. Bolsonaro, no entanto, faz uma aposta arriscada. Ele acredita que até agosto, quando começa a campanha eleitoral, o tema pandemia estará esgotado e a economia é o que mais vai interessar ao brasileiro. “Mas a crise sanitária não será esquecida”, diz o cientista político Bruno Silva, do Laboratório de Política e Governo da Universidade Estadual Paulista.
De fato, nas eleições municipais de 2020 foram punidos com a falta de votos candidatos que relativizaram o impacto que o novo coronavírus traria ao Brasil. Com a vacina no palanque, quem ganha pontos com o eleitorado é o governador de São Paulo, João Doria. Foi ele o responsável pelas primeiras aplicações em adulto, há um ano, e, agora, em criança. Postado ao lado do menino xavante Davi, Doria repetiu a cena do ano passado, quando acompanhou a imunização da enfermeira Mônica Calazans. Até aqui, seu mérito ainda não se reflete em intenções de votos nas pesquisas. Mas não há a menor dúvida de que ele tem uma história para contar. Se não fosse o seu pioneirismo em São Paulo, em janeiro do ano passado, o Brasil teria começado a imunização de dois a três meses depois.
Ainda que tenham sido movimentos políticos calculados, o governador fez o que todo homem público deveria fazer, promovendo a vacinação. Já o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, homem de Bolsonaro, age vergonhosamente ao avesso. Como o chefe, protagoniza momentos constrangedores, como os registrados durante o ato de lançamento da campanha vacinal para as crianças. Em nenhum ato ele conclamou a população a participar de um momento fundamental, sinônimo de zelo com a saúde dos brasileiros — e fez questão de dizer que não é obrigatória. Vindo de um médico, é lamentável. Vindo do responsável pelo combate à pandemia, que na semana passada registrou mais de 200 000 novos casos por dia no país, é chocante.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773