Faz pouco mais de 100 anos que o ritual de uso do medicamento que mudou a história do diabetes, salvando milhões de vidas desde então, depende de injeções diárias. A partir do momento em que a primeira pessoa recebeu uma dose de insulina, lá em 1922, até os dias de hoje, quem depende do hormônio não pode deixar de aplicá-lo religiosamente uma ou inúmeras vezes ao longo de 24 horas. Uma revolução se anuncia, portanto, com a chegada da insulina semanal, um dos maiores destaques do congresso da Associação Americana de Diabetes. Graças a ela, o número de picadas para domar a glicose no sangue cai de 365 para 52 ao ano. Fora o conforto e a comodidade para o paciente, estudos apresentados em primeira mão revelaram que o produto é superior às versões diárias com a mesma indicação. É notícia a ser celebrada pela comunidade de brasileiros que vivem com diabetes — mais de 16 milhões de cidadãos.
A medicação, de nome Icodeca, foi formulada pelo laboratório Novo Nordisk depois de anos de pesquisa. Com uma modificação química na molécula da insulina basal, a substância obtida está apta a atuar no organismo durante sete dias, tendo ação idêntica à do hormônio natural — é ele que abre as portas das células para captar a glicose no sangue, evitando sua sobrecarga na circulação e os danos decorrentes disso. Na reunião científica, foram publicados os dados de duas pesquisas reunindo 1 510 pessoas com diabetes tipo 2 — versão que corresponde a 90% dos casos da doença e está associada ao avançar da idade e ao ganho de peso. Antes dos estudos, todos eles não estavam conseguindo baixar a glicemia adequadamente com remédios de uso oral. Uma parcela dos voluntários tomou a insulina semanal, aplicada com canetas semelhantes às mais modernas do mercado; outra parcela recebeu injeções diárias. “O esperado era que ambas tivessem a mesma eficácia. Mas nos surpreendemos: a Icodeca teve resultado superior”, diz Priscilla Mattar, diretora médica da Novo Nordisk no Brasil.
Na prática, o novo produto não só aprimorou o controle do diabetes como esteve ligado a menor risco de hipoglicemias, perigoso efeito colateral comumente relacionado ao uso de insulina e marcado por quedas acentuadas do açúcar no sangue. “O índice de tempo na meta ideal para os níveis de glicose foi de 72% com a versão semanal, ante 67% da diária”, afirma Priscilla. “Uma das grandes vantagens dessa inovação é contornar barreiras à adesão ao tratamento”, avalia o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto que esteve no evento em San Diego, nos Estados Unidos. A Icodeca vem sendo testada tanto em pessoas com diabetes tipo 1 (de origem autoimune, em geral detectado na infância ou adolescência) como com o tipo 2. Mas é especialmente essa parcela majoritária dos pacientes que apresenta maior rejeição, medo e dificuldade em relação à utilização de insulina — e, em algum momento da doença, ela provavelmente será prescrita. A medicação semanal ajudaria, então, a angariar maior engajamento na terapia, ainda mais tendo em vista que comprimidos tradicionalmente receitados para fazer o hormônio trabalhar direito no corpo deverão continuar integrando o plano de ação.
A novíssima insulina já foi submetida às agências regulatórias que analisam e aprovam a liberação de fármacos em diversos países, incluindo o Brasil. Por aqui se espera que ela chegue às farmácias até 2025. O desenvolvimento tecnológico por trás do produto coroa uma trajetória centenária de aperfeiçoamento de moléculas e soluções para ampliar a qualidade e a expectativa de vida de quem recebe o diagnóstico de diabetes. Das seringas dolorosas injetadas várias vezes ao dia às canetas high-tech com microagulhas de aplicação semanal, há muito que comemorar. E, ao que tudo indica, a história não acaba aí.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848