A humanidade já caminhava a passos largos rumo a uma vida embalada pelo universo digital quando veio a pandemia e tudo se acelerou, chacoalhando pilares até então inabaláveis. Nos tempos atuais, com o cotidiano da maior parte das pessoas imerso em aplicativos e plataformas eletrônicas — das escolas ao home office, da alimentação ao entretenimento, do comércio à medicina, do esporte aos videogames, sem falar nas interações sociais —, a rotina do planeta se transferiu definitivamente para o teclado e as telas. Pois nos bastidores desse movimento tectônico encontram-se os indispensáveis dedos de programadores e desenvolvedores dos sistemas que regem o dia a dia de todo mundo em algum grau — uma camada de profissionais que marcha firme no mercado sem avistar nenhum sinal de crise, justo o contrário. “Fui efetivado ainda na faculdade, como vários de meus colegas”, conta Nicholas Ferrer, 23 anos, que pulou de estagiário para contratado no último período da graduação porque a empresa onde trabalha não poderia arriscar perdê-lo.
O setor da tecnologia da informação, ou TI, já fervilhava no país havia alguns anos, até que a realidade imposta pelo novo coronavírus elevou a demanda a um novo patamar, deixando um rastro de milhares de vagas desocupadas. O déficit brasileiro dessa valiosa mão de obra, que era de 30 000 em 2019, dobrou nos primeiros seis meses deste ano e, pelos cálculos da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), deve alcançar 420 000 até 2024. O fenômeno se irradia por toda parte, já que são justamente essas as cabeças que botam as engrenagens por trás das telas para girar. Nos Estados Unidos, registravam-se, no fim de 2020, nada menos que 1,4 milhão de vagas de TI à espera de candidatos.
Um dos motivos para tamanha disparidade entre oferta e procura está na especificidade do trabalho, que exige domínio de processamento de dados e de recursos técnicos os mais variados em permanente estado de evolução. “Quem atua no setor é um eterno aprendiz. A tecnologia de agora vai ser diferente daqui a três anos e eles precisam se inovar o tempo todo”, observa o presidente-executivo da Brasscom, Sergio Paulo Gallindo. Os profissionais mais requisitados são os desenvolvedores de software, responsáveis por criar e administrar programas; os cientistas de dados, encarregados de garimpar e extrair elementos aproveitáveis em meio a montanhas de informações; e os especialistas em cibersegurança, para proteção contra os cada vez mais frequentes e ousados ataques virtuais. Embora não haja necessidade de diploma para ingressar no mercado, o canudo é apreciado, assim como a formação em áreas afins e a própria experiência.
Também o inglês pode contar pontos decisivos nesta era em que, mais do que nunca, o mundo do trabalho se ancora na ideia de que dá para atuar de qualquer canto do globo para empresas de toda parte. No caso da turma de TI, como o batente é quase sempre remoto, a nacionalidade vira mero detalhe — e o Brasil acabou por se tornar um celeiro de jovens interessados em ganhar em dólar, ou outra moeda forte, mesmo que isso se traduza em infindáveis madrugadas por causa do fuso horário. “Os brasileiros são qualificados e têm facilidade para gerenciar o tempo e as altas exigências, um perfil que os empregadores buscam”, afirma Ilya Brotzky, CEO da VanHack, plataforma canadense de recrutamento pela qual passaram mais de 230 000 profissionais da área. Recentemente, pescou uns 1 000 brasileiros. E dá-lhe salários em dólar, o que traz às empresas sediadas por aqui um desafio adicional para fisgar talentos. “É difícil cobrir um salário em dólar e, além disso, quem presta serviço para o exterior tem mais chances de crescer, o que torna muito atraentes as propostas de multinacionais”, diz o desenvolvedor Mateus Vahl, 26 anos.
A disputa por talentos é tão acirrada que mesmo jovens recém-egressos da faculdade já dão as cartas na mesa de negociação. “Com a dificuldade em caçar por bons quadros, frequentemente quem dita as condições de emprego é o contratado”, afirma Tomás Ferrari, fundador da plataforma GeekHunter. “Recebo todos os dias mensagens de recrutadores, um movimento que claramente aumentou na pandemia, com as empresas entrando no jogo com mais urgência”, constata o engenheiro de dados sênior Ramon Leoncio, 28 anos. Maior centro de formação de cérebros em TI no país, o Instituto de Gestão e Tecnologia da Informação viu as matrículas mais do que triplicar nos últimos meses, parte delas paga pelas próprias empresas sob a pressão de preencher a jato cadeiras vazias. “O mundo se transformou rapidamente, e elas estão correndo para acompanhar esse movimento”, ressalta Vinícius Bozzi, CEO do instituto. Um de seus clientes é o Banco Pan, que hoje arca com os custos dos estudos de 1 000 pessoas (funcionários ou não) em cursos de desenvolvedor de software, enquanto a Embraer paga para 300 se aperfeiçoarem na área. No planeta dependente de tecnologia, quem tem olhos capazes de ler coding — a linguagem da programação — é rei.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756