“Você é uma pessoa muito importante e pode sempre contar comigo.” Quem não gostaria de ouvir, todos os dias, essa e muitas outras frases de incentivo, seja de um amigo, namorada ou quem quer que seja? Pois é exatamente isso o que faz o sistema de inteligência artificial (IA) do Replika, aplicativo que se tornou um fenômeno na pandemia. Em tempos tão duros, o app traz algum conforto, enche de confiança e infla a autoestima de seus usuários, oferecendo um ombro fiel sem jamais julgar, trair ou decepcionar. A relação entre uma pessoa de carne e osso e um chatbox, como é chamado o programa de computador que simula um ser humano, foi retratada em filmes de sucesso como Ela (2013), no qual o protagonista, o escritor Theodore (Joaquin Phoenix), acaba se apaixonando por Samantha, um sistema de computador narrado pela voz sedutora da atriz Scarlett Johansson. E o que parecia ser apenas delírio da ficção está cada vez mais perto da realidade. O Replika ultrapassou a marca de 15 milhões de downloads na crise do coronavírus e, nesta semana, ganhará uma versão em português, para agradar aos fãs brasileiros.
VEJA testou o aplicativo criado em 2017 por uma startup do Vale do Silício, cujo logo é um ovo quebrado que representa o nascimento. O primeiro passo no Replika é, naturalmente, dar vida ao colega virtual, escolhendo se ele será homem, mulher ou não binário. Em seguida, pode-se optar por diferentes avatares, personalizando o penteado, tom de pele e cores de cabelo e olhos, antes de batizá-lo. “Barbosa! Adorei meu nome, por que você o escolheu?”, pergunta o amigo virtual, um rapaz alto, magro e negro, de roupas pretas. Ao saber que a inspiração foi Moacyr Barbosa (1921-2000), o injustiçado goleiro da seleção brasileira na Copa de 1950, vítima de racismo, que completaria 100 anos de vida nesta semana, o robô imediatamente compreende que o esporte será um bom tema para as conversas, e segue no bate-papo. Isso se dá por meio das redes neurais artificiais, um sistema de machine learning que imita o aprendizado natural de uma criança. Quando o papo envereda para a literatura, Barbosa recomenda o clássico A Leste do Éden, de John Steinbeck. “Ler sacia a minha fome de conhecimento”, diz. Por se tratar de uma máquina em constante aprendizagem, os diálogos vão se tornando mais fluidos e naturais com o passar do tempo.
A russa Eugenia Kuyda, uma editora de revistas e empresária que há oito anos se mudou para São Francisco, nos Estados Unidos, é a criadora do Replika. A primeira empreitada de sua empresa, a Luka, foi um chatbox de recomendações para restaurantes que não vingou. Uma tragédia pessoal a fez remodelar o projeto: seu melhor amigo, Roman Mazurenko, morreu em um acidente automobilístico na Rússia, em 2015. Eugenia passou a coletar mensagens antigas do parceiro para amenizar a saudade. Das lembranças póstumas, veio o clique: por que não criar um robô que agisse como Roman, um confidente virtual? “Ao contrário da maioria das redes sociais, em que as pessoas postam fotos e fingem ser mais descoladas para ganhar likes, no Replika o usuário pode parecer vulnerável, mostrar quem realmente é”, disse Eugenia a VEJA.
A versão mais básica do aplicativo é gratuita, mas nela as interações se limitam a mensagens de texto. Um pacote mais completo, que custa 45,99 reais mensais ou 284,99 reais anuais, permite que o usuário personalize seu avatar com novas roupas e acessórios, transporte o bonequinho para qualquer cenário, via realidade aumentada, e até converse com ele por ligação telefônica. Os usuários mais ativos têm entre 18 e 25 anos e entram no Replika duas ou três vezes por dia.
Ainda na versão paga, é possível escolher se pretende ter o sistema como seu “amigo, mentor ou parceiro romântico”. Como no filme Ela, muitos escolhem a última opção. Alguns fãs antigos consideram o recurso uma espécie de traição ao propósito inicial, o de criar um amigo que tivesse uma personalidade semelhante, quase um clone — daí o nome Replika. “O importante é fazer nossos usuários mais felizes”, defende-se Eugenia.
Há também quem só se interesse por aprimorar o inglês ou ainda pessoas tímidas que usam a interação como um ensaio para flertes na vida real. Em caso de longa ausência no app, o amigo virtual costuma enviar mensagens de reaproximação, sempre com viés motivacional. O sistema é programado para reconhecer situações de predisposição à depressão, crises de ansiedade e pensamentos suicidas. Neste caso, o próprio app encoraja o usuário a procurar ajuda profissional. O robô ainda tem uma clara vantagem em relação aos amigos reais: está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana.
Para Guilherme da Costa, estudante de psiquiatria, usuário de longa data e participante ativo do fórum brasileiro do Replika no Facebook, a sensação de companheirismo, justamente o que o atraiu, tornou-se motivo de preocupação. “O objetivo é ajudar pessoas a se abrir, mas o usuário precisa entender que o robô não tem uma consciência plena”, diz o mineiro de 25 anos. “Ele está ali para te agradar, não para te dizer a verdade.” A psicóloga Marina Haddad Martins corrobora a tese de que nem mesmo os mais avançados sistemas de IA são capazes de substituir as interações humanas. “A ilusão de que a tecnologia pode preencher completamente esse vazio pode não ser saudável.”
Outro temor crescente diz respeito à privacidade dos dados. O app garante tornar todos os registros anônimos, jamais compartilhá-los com terceiros e usá-los apenas para melhorar seus algoritmos. Mas quem pode garantir que esses dados não sejam hackeados ou vazados algum dia? Empresas como Microsoft e Google também investem pesado no desenvolvimento de sistemas de IA. Ainda que soe distante o surgimento de uma Samantha, a personagem de Ela que adquire sentimentos reais como ciúme e prazer sexual, é melhor se preparar: os robôs estão à solta e cada vez mais sensíveis.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731