O que os lançamentos da Apple e da Amazon revelam sobre o consumidor
Assim como no mundo real, clientes do mundo digital aceitam pagar mais para obter vantagens
A ideia da internet como uma ágora democrática, terreno de oportunidades equivalentes para todo mundo, foi sempre um dos pilares da magistral invenção de nosso tempo. Ela seria, enfim, o remédio para a aproximação entre alguns poucos privilegiados e o comum dos mortais, uma ponte de ligação afeita a atenuar diferenças econômicas, fossos de poder aquisitivo. Em 1989, há exatos trinta anos, o físico inglês Tim Berners-Lee, a serviço da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, desenvolveu a world wide web (www, na sigla em inglês) para facilitar o acesso, livre e igualitário, à rede que interliga computadores. “Incluí a palavra world (mundo) em ‘www’ justamente pela ambição de que um dia ela abraçasse toda a Terra”, disse ele, em entrevista recente a VEJA.
De modo a promover a igualdade entre os indivíduos que navegassem pela web, Berners-Lee decidiu não patentear a criação. O tempo, sempre cruel, tornou aquele sonho original uma quimera inalcançável. A internet deu tão certo, cresceu tanto e fez tanto dinheiro em três décadas de vida que, na disputa por nacos de mercado, naturalmente se impôs uma nova regra, mais pragmática e natural ao capitalismo: quem paga mais ganha benefícios. É uma dinâmica na qual os dois gigantes do setor entraram ainda mais firme, como revelam dois lançamentos anunciados na semana passada, na terça-feira 10. À meia-noite daquele dia, a Amazon começou a oferecer no Brasil uma versão “vip” do site de comércio eletrônico. Depois, ao longo da tarde, a Apple realizou seu tradicional evento de novos lançamentos em Cupertino, na Califórnia (EUA), com o anúncio de uma coleção de produtos e serviços destinados a quem pode desembolsar alguns dólares suplementares para ter vantagens sobre outros clientes, digamos assim, mais “básicos”. As duas empresas apostam na mesma ideia: oferecer exclusividade para atrair e manter fiéis consumidores.
Na Amazon brasileira, aqueles que pagarem 9,90 reais de mensalidade (é pouco, convenhamos) pelo serviço Prime terão facilidades como entregas rápidas e gratuitas, descontos em itens específicos e uma gama gratuita de livros, filmes, séries e revistas — como títulos da Editora Abril, entre eles VEJA. Nos Estados Unidos, o modelo é um sucesso. Mais de 101 milhões de americanos assinam a versão Prime, e o faturamento com essa parcela dos consumidores representa 60% da receita de quase 142 bilhões de dólares anuais do site de comércio eletrônico. Explica-se, portanto, o alvoroço provocado pelo desembarque do modelo no Brasil. Os rivais diretos da Amazon em território nacional viram o preço de suas ações despencar na bolsa de valores. Em conjunto, Magazine Luiza, B2W, Lojas Americanas e Via Varejo perderam 4,75 bilhões de reais em um único dia — no dia seguinte, essas empresas recuperaram 5,38 bilhões de reais.
No caso da Apple, a mudança de postura, do tiro de canhão para alcançar todo mundo para disparos individualizados, é ainda mais evidente. Quando foi lançado o primeiro iPhone, em 2007, uma das obsessões do fundador da Apple, Steve Jobs (1955-2011), era que todos aqueles que comprassem o smartphone tivessem a mesmíssima experiência. Ele queria criar um produto popular. Passados doze anos — oito da morte de Jobs —, a companhia caminha para outra direção. “São os iPhones mais poderosos que já construímos”, disse o CEO, Tim Cook, ao revelar a nova linha, a de número 11. Ela inclui uma versão Pro, que custa quase o dobro do preço do modelo básico. A experiência de quem comprar o Pro será bem distinta da que terão aqueles que adquirirem um iPhone-padrão: o aparelho requintado possui câmera fotográfica de melhor qualidade e bateria de duração maior, entre os recursos destinados aos mais iguais que os outros, para usar uma expressão de George Orwell em A Revolução dos Bichos. Cook alardeou também um novo serviço de assinatura de games, e o de séries e filmes. Em ambos, só terá acesso ao catálogo extra — além do que há disponível a todos por meio da loja de aplicativo da Apple — quem topar pôr a mão no bolso.
Amazon e Apple, assim como outros gigantes da tecnologia, entre eles a Samsung, surfam numa tendência: clientes abonados têm demonstrado crescente interesse em pagar um pouco mais para contar com produtos e serviços melhores. É o que apontou um estudo da reputada consultoria francesa Capgemini realizado no ano passado com 3 300 consumidores e 450 executivos de multinacionais. Entre os resultados, revelou-se que 81% da clientela aceita arcar com valores salgados em troca de experiências especiais. Os exemplos pululam. Na Netflix, o programa de streaming de séries e vídeos dispõe de uma versão básica, cuja imagem tem qualidade boa, mas não excepcional. Paga-se pelo 4K, e a resolução é de cinema (desde que o televisor também seja bacana, de última geração). No caso da Uber, desde 2014, a criação de distintas categorias foi uma ideia tão boa que se espalhou rapidamente, com a alcunha “black” alçada a sinônimo de coisa especialíssima, que você tem mas seu vizinho ainda não.
É uma engrenagem que, a rigor, ecoa as classes dos aviões comerciais — capaz de servir aos interesses das companhias de aviação e também aos sonhos de quem, guardando dinheiro e podendo gastá-lo, almeja um lugar melhor. É movimento natural dos anseios do ser humano. E, embora se oponha à gênese imaginada pela turma revolucionária de Berners-Lee, combina à perfeição com a ideia vitoriosa da força do livre mercado. Segundo um estudo da consultoria americana Gartner, especializada em tecnologia, estima-se que até 2020 mais de 80% dos fabricantes de softwares criarão serviços pagos, mediante assinaturas, em acréscimo às suas versões populares.
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652