A passeata no centro de Dallas, no estado americano do Texas, transcorria de forma pacífica, apesar do motivo do protesto: a morte de dois negros por policiais brancos na Louisiana e em Minnesota. A paz acabou quando Micah Johnson — um jovem negro de 25 anos munido de fuzil — disparou contra a polícia, ferindo sete guardas e matando outros cinco. Depois de uma infrutífera negociação, Johnson, acantonado em uma garagem próxima, recebeu a visita de um robô de controle remoto que explodiu ali mesmo, tirando sua vida. Essa ação sem precedente, ocorrida em julho de 2016, atiçou a imaginação das pessoas. Afinal, se a polícia podia fazer aquilo com uma máquina comum, até onde ela iria com um robô inteligente? Um ano e meio depois do caso Dallas, a série Black Mirror projetou, em um de seus episódios, a imagem de um cão-robô perseguindo sua vítima — cena perturbadora, porém restrita ao terreno da ficção, pelo menos segundo as empresas que estão fabricando o novo melhor amigo do homem.
A robótica, é bom lembrar, já faz parte do cotidiano, seja em fábricas automatizadas, seja dentro de casa. Algoritmos são chamados de robôs e estão espalhados pela internet. Nada disso, porém, é tão interessante quanto as máquinas da Boston Dynamics, empresa americana fundada em 1992 e hoje controlada pela sul-coreana Hyundai, que tem milhões de visualizações toda vez que posta vídeos de seu robô humanoide Atlas dançando ou vencendo obstáculos. Do laboratório da Boston, já saiu uma dezena de modelos, incluindo o BigDog, um quadrúpede de carga que nunca chegou a ser comercializado. O sucesso do momento, vendido por 74 500 dólares — preço que pode dobrar com os opcionais —, é Spot, um cão-robô com mais de 500 unidades em operação, prestando serviço para empresas de atividades insalubres e para a polícia — não sem causar polêmica, é verdade.
Recentemente, o departamento de polícia de Honolulu, no Havaí, adquiriu uma unidade completa por 150 000 dólares, utilizando recursos do fundo de combate à Covid-19. Desde então, Spot vem sendo usado para monitorar assentamentos de desabrigados que contraíram o coronavírus. Ele é capaz de conferir a temperatura da pessoa escaneando os olhos a 2 metros de distância. Leva água e comida para os sem-teto e se torna um elo de comunicação com eles. A polícia se mostra satisfeita com o resultado, mas não os munícipes, incomodados com o investimento feito em um robô com verba que poderia ser doada à população empobrecida pela crise. Em Nova York, Spot — rebatizado de DigiDog pela polícia local — foi usado em operações em conjuntos habitacionais, provocando a revolta de comunidades que ainda se lembram do caso Dallas. Segundo a União Americana pelas Liberdades Civis, é questão de tempo até que as forças de segurança sejam tentadas a armar os cães. Sob pressão, a polícia de Nova York achou por bem devolver o equipamento.
A Boston não está sozinha no mercado. A empresa suíça ANYbotics já vendeu vinte unidades de seu cão cibernético, batizado de ANYmal, e espera comercializar dez vezes mais nos próximos três anos. Ela tem clientes de peso como a petrolífera Petronas e a mineradora brasileira Vale, para as quais vende unidades customizadas por 165 000 dólares. VEJA conversou com Cheila Marques, gerente da ANYbotics, que esclareceu que o cão-robô é ideal para ambientes de alto risco, como plataformas de petróleo e indústrias químicas: “Ele sobe e desce escadas, agacha-se, tem sensores e pode inspecionar lugares de difícil acesso”. Perguntada sobre o uso militar do ANYmal, Cheila diz que essa modalidade contraria o estatuto da companhia.
Não se sabe se a chinesa Xiaomi terá a mesma postura antibelicista com o CyberDog, anunciado há poucos dias. Ainda na fase de protótipo, ele tem um aspecto futurista e até mesmo ameaçador. Ainda não está claro onde será empregado, mas, segundo a empresa, serão produzidas inicialmente 1 000 unidades destinadas a “entusiastas da robótica”. O fato é que as três marcas ainda estão no estágio preliminar da inteligência artificial, no qual dispositivos dependem da intervenção humana. Isso deverá mudar nas próximas décadas, quando serão lançados robôs totalmente autônomos. Até lá, é bom que os parâmetros morais de uso tenham sido configurados — de preferência, universalmente.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2021, edição nº 2754