Como os carros beberrões tentam sobreviver aos novos tempos
Para não perderem um grande filão de negócios, as montadoras aceleram a adaptação de SUVs e picapes aos motores elétricos
Os dinossauros automotivos começaram a dominar a Terra a partir dos anos 90, na forma de SUVs, a sigla em inglês criada para classificar os modernos jipes. Esse virou o maior negócio das montadoras e, na linha quanto maior, maior o status, os monstrengos foram crescendo de tamanho até a chegada do Hummer, que representa o ápice da megalomania sobre quatro rodas. Desenvolvido para uso militar na Guerra do Golfo, o veículo pesava 3,5 toneladas e tinha condições de percorrer apenas 4 quilômetros com 1 litro de gasolina. Diz a lenda que a primeira versão “civil” do carro, datada de 1992, foi produzida a pedido do ator Arnold Schwarzenegger, que se apaixonou pelo modelo quando um comboio cruzou seu caminho em uma avenida de Los Angeles. Tamanho potencial de vendas não passou despercebido e, em 1999, a marca foi comprada pela General Motors. A montadora, porém, não contava com duas reviravoltas: o aumento significativo dos preços do petróleo (principalmente após os atentados de 11 de setembro de 2001) e a escalada da preocupação global com as mudanças climáticas.
De objeto de desejo, os SUVs passaram a ser símbolo de uma era de egocentrismo e de descaso com o planeta. Alvo mais óbvio da patrulha ambiental, o Hummer deixou de ser produzido em 2010 e parecia para sempre destinado a se tornar um fóssil automobilístico. Mas um plano revelado há algumas semanas pode salvá-lo desse fim. Em um documento vazado de um plano estratégico da GM para o Estado americano de Michigan consta a ideia da construção de uma fábrica de SUVs e picapes de luxo até 2021. Fontes ligadas à montadora afirmam que existe a possibilidade de que dessa unidade saia uma nova geração de Hummers. Ironia das ironias, eles voltariam à vida em uma versão ecologicamente correta, equipada com um motor elétrico.
O possível retorno do jipão ao mercado faz parte de um movimento maior de tentativa de sobrevivência dos dinossauros da indústria no ambiente inóspito das pressões ambientais contra o consumo de combustíveis fósseis. Para não perderem um grande filão de negócios, as montadoras trataram de acelerar a adaptação desses carrões aos novos tempos. A principal concorrente local da GM, a Ford, promete para o ano que vem uma versão de SUV inspirada nas linhas do clássico Mustang movida somente a eletricidade. Recentemente, a sueca Volvo, uma das mais vanguardistas em termos de tecnologia embarcada, anunciou o XC40 Recharge, o primeiro carro da montadora a dispensar o motor a combustão. No Brasil, por enquanto, a única versão de SUV totalmente elétrica disponível é o I-Pace, da Jaguar. A partir de maio do ano que vem o modelo deve ter a concorrência do e-tron, da fabricante alemã Audi.
Além das preferências da nova geração de consumidores, mais atentos às questões ligadas à preservação do planeta, as pressões geradas pelas legislações de vários países funcionam como combustível para as mudanças. Nos Estados Unidos, Barack Obama endureceu as exigências federais quanto à emissão de poluentes da frota de novos carros que era colocada na rua. A Europa e até mesmo a China seguem a mesma trilha.
O modelo a ser adotado pela indústria daqui para a frente não nasceu de nenhuma das empresas centenárias do setor. A Tesla, fabricante fundada já no século XXI, é a grande referência do mercado em tempos de combustíveis limpos. Em 2018, a companhia do visionário sul-africano Elon Musk superou marcas consagradas como Mercedes-Benz e BMW em vendas nos Estados Unidos. Na semana passada, suas ações subiram 17% na bolsa americana, graças ao anúncio feito por Musk de que a empresa registrara lucro no terceiro trimestre de 2019. A notícia levou a Tesla a ultrapassar a GM como a montadora nacional de maior valor em Wall Street.
É justamente nesse formato inovador que duas startups americanas pretendem se consolidar no recentíssimo mercado de SUVs e picapes elétricos. A Rivian em breve colocará nas ruas dos Estados Unidos o R1T, um adversário elétrico do modelo mais vendido do país, a caminhonete F-150, da Ford. O fato curioso é que a própria Ford investiu cerca de 500 milhões de dólares na “concorrente”. O outro aguardado lançamento vem de Nova York: com design inspirado nas versões clássicas do icônico jipe Range Rover, a Bollinger anuncia para 2021 as primeiras unidades do B1, como foi chamado seu SUV elétrico. Feito totalmente de alumínio, o carro promete arrancar com a potência de um modelo esportivo. O ato de abandonar o motor a gasolina ainda não foi suficiente para tirar os SUVs da mira dos ecologistas. Em setembro, milhares de manifestantes foram de bicicleta às portas do Salão do Automóvel de Frankfurt, na Alemanha, para acusar as montadoras de insensibilidade com relação à crise do clima. Entre os principais alvos da ira da turma estavam os tanques urbanos. É uma mostra de que a batalha dos SUVs contra a extinção será ainda mais dura do que parece.
Grandes e ecológicos
Três novidades do mercado que dispensam combustíveis fósseis
BOLLINGER B1
Autonomia: 320 quilômetros
Potência: 614 cavalos
Preço: 125 000 dólares
RIVIAN R1T
Autonomia: 370 quilômetros
Potência: 407 cavalos
Preço: 69 000 dólares
JAGUAR I-PACE
Autonomia: 470 quilômetros
Potência: 400 cavalos
Preço: 437 000 reais
(o único disponível no Brasil)
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659