Crianças “grudadas nas telas” podem ter seu desenvolvimento atrasado
Pequenos nascidos a partir de 2010, chamados de "alfas", estão sendo expostos a estímulos constantes de dispositivos que podem causar danos à mente
Não é fácil para ninguém se reconhecer como membro de uma geração. Ainda assim, ao longo do século XX os sociólogos e estudiosos do comportamento humano se empenharam em dividir a história em gomos, a fim de associar os nascimentos aos valores e hábitos de um período específico. Houve os baby boomers, do pós-guerra, assim nomeados pela primeira vez em 1977; houve a turma do rock’n’roll, que curtia a juventude no fim dos anos 1950. Havia a denominação de um grupo aqui, outro ali, mas foi apenas nos anos 1990 que o abecedário completo (“X”, “Y”, “Z”…) já parecia insuficiente para as nomeações. Dois livros, ambos lançados em 1991 — Generations, dos americanos Neil Howe e William Strauss, sem edição em português, e Geração X: Contos para uma Cultura Acelerada, do canadense Douglas Coupland —, inauguraram a lista de sopa de letras que proliferariam sem cessar até chegar ao termo que define as crianças nascidas a partir de 2010, ano de lançamento do iPad, de Steve Jobs: a geração alfa, também chamada de glass (vidro, em inglês, em evidente referência às telas).
O termo alfa foi cunhado pelo australiano Mark McCrindle para definir a primeira geração formada só por gente nascida neste século, sem conexão com integrantes dos anos 1900, como é o caso da geração Z, que engloba a turma de 1995 a 2009. Segundo McCrindle, psicólogo e pesquisador demográfico, os alfas, quando adultos, terão desafios e oportunidades não maiores nem menores que os nascidos em gerações anteriores, apenas diferentes. Eles são, em sua maioria, filhos dos millennials (1980-1994). Supõe-se que, devido à globalização irrefreável, trocarão de endereço e de emprego mais vezes ao longo da vida, que será majoritariamente urbana. Os alfas, segundo McCrindle, demorarão mais tempo para sair da casa dos pais e começarão a trabalhar tarde.
A denominação “glass” é adequada. Eles vivem grudados nas telas quando estão em casa e levam consigo seus tablets e smartphones quando saem à rua — os pais usam o YouTube e os aplicativos como babás. O vidro, interface com a qual interagem, estará nos visores, relógios, painéis de restaurantes, trens e automóveis que usarão quando adultos. Não há separação entre universo físico e virtual para os alfas. O mais velho da geração tem hoje de 10 para 11 anos e vive em um mundo com 7,8 bilhões de habitantes, no qual a maior população é a da China e a maior economia, a dos Estados Unidos.
Em 2050, aos 40 anos, o contingente terá saltado para 9,8 bilhões de pessoas. A maior população será a da Índia e o país mais rico, a China. Um em cada dois alfas concluirá o ensino superior e será, de forma geral, inteligente, próspero e feliz. Será mesmo? As dores de crescimento parecem impor desafios inescapáveis a essa turma, no avesso da imagem idílica desenhada pelo criador do termo.
O neurocientista francês Michel Desmurget, autor do livro A Fábrica de Cretinos Digitais, entende que os millennials, fascinados pela tecnologia, estão involuntariamente destruindo a vida de seus filhos, criando seres humanos com Q.I. (quociente de inteligência) menor do que o das gerações anteriores. O cérebro do Homo sapiens está na melhor fase da plasticidade na infância, uma janela que não fica aberta para a vida toda. Portanto, esse é o momento em que ele deve ser submetido a estímulos externos a fim de se desenvolver: música, literatura, teatro, esportes, estudo e lição de casa. A vida como ela é, enfim.
“Estamos formando indivíduos incapazes de compreender o mundo e agir como cidadãos cultos”, diz o neurocientista Desmurget. “Os pais podem estar moldando profissionais destinados ao subemprego — adultos que nem mesmo com o computador saberão lidar.” Há algum exagero, uma dose de aversão à tecnologia, mas convém sempre o olhar crítico aos exageros. Estudos recentes revelam que crianças com 8 anos de idade estão sendo submetidas a mais de cinco horas de tempo de tela, independentemente do poder aquisitivo, dada a expansão da tecnologia. “O fenômeno atinge todas as classes sociais”, diz a psicopedagoga Raquel Rabelo, especialista no tema. “Há crianças deixadas sozinhas em favelas na companhia de celulares e TVs, porque os pais precisam sair para trabalhar.” Mas nem sempre o problema é a falta de dinheiro — o entretenimento e a educação são transferidos para as telas porque é mais cômodo para quem cuida.
Há solução? Sim. A forma de evitar danos ao desenvolvimento infantil é ampliar o leque de experiências, que podem ser jogos, leitura ou um passeio à praça, simples assim. Cada geração tem suas particularidades, mas todas têm algo em comum: uma geração mais velha para olhar por ela. Não deveria ser diferente com os alfas.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727
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