Houve um tempo em que games baseados em histórias em quadrinhos ou em filmes de heróis eram versões pouco empolgantes dos gibis originais. Agora, a situação é outra. Há ótimos jogos que traduzem de forma nova e empolgante o apelo que esses personagens provocam. E um dos melhores exemplos atuais é Spider-Man 2, título que acaba de ser lançado para o PlayStation 5. Trata-se da terceira parte e uma trilogia que começou com Marvel’s Spider-Man, de 2018, e continuou com Marvel’s Spider-Man: Miles Morales, de 2020.
Nesta nova aventura, o jogador precisa ajudar Peter Parker e Miles Morales a enfrentar vilões como Kraven e seu exército de caçadores e Venom, ao mesmo tempo em que devem lidar com suas próprias questões pessoais.
Desenvolvido pelo estúdio Insomniac Games, Spider-Man 2 tem participação decisiva do brasileiro Davison Carvalho, diretor de arte do título. O profissional já trabalhou produzindo artes conceituais para jogos como Mortal Kombat X e Halo Infinite e também para a Marvel Studios, desenvolvendo conceitos artísticos para filmes como Guerra Civil, Doutor Estranho, Thor: Raganrok e Capitã Marvel.
Em entrevista, o profissional conta os bastidores da produção, fala sobre a busca de referências para a criação do visual do herói e reflete sobre seu papel como exemplo para outros desenvolvedores brasileiros.
Conte um pouco de sua trajetória até aqui.
Foi inacreditável. Trabalho na indústria de games há 13, 14 anos. Antes, trabalhava com publicidade em São Paulo. Até que montei um estúdio de design, e ele migrou para o mercado de games. Sempre tive interesse na área, joguei muitos jogos desde pequeno. O desejo já existia, mas em 2012 um estúdio me convidou para trabalhar com jogos. Fui conversar com eles e acabei me mudando para a Carolina do Norte. Desde então, trabalhei em outros estúdios, mudei para a Califórnia. Participei de jogos muito diferentes e todas essas experiências agregaram muito para minha bagagem. Há uns três anos, meio por acaso, encontrei o pessoal da Insomniac e perguntei se eles não estavam precisando de uma pessoa com meu perfil. Minha parceira atual na direção de arte, Jacinda Chew, me disse que precisavam exatamente de alguém assim. E foi assim que comecei lá. Tem sido uma aventura incrível nos últimos dois anos.
Como trabalhar com um personagem tão icônico quanto o Homem-Aranha e apresentar uma versão original do herói?
Esse é o pensamento que temos o tempo todo durante a produção. Queremos trazer a nossa versão de forma legal e original. Ambos os Spider-Men, Peter e Miles, são ícones da cultura pop que tiveram tantas versões incríveis em tantas mídias diferentes. Por isso, a responsabilidade é muito grande. A gente brinca que é fácil e, ao mesmo tempo, difícil fazer o personagem ser genuíno, dar a nossa visão, e também torná-lo humano, fazer com que as pessoas se identifiquem com ele. Justamente porque existem tantas versões. É preciso ter consistência com tudo que já criamos. Do lado da arte, é complicado, mas faz parte da diversão. Estudamos muita coisa diferente para chegar no resultado final. Olhamos para Fashion Week, estudando algum tecido. Houve muito trabalho de pesquisa para criar esse personagem.
Quais foram as principais referências usadas?
Os personagens usam vários trajes no game, e cada um tem uma temática. Mas ao invés de olhar para filmes, mídias recentes, ou mesmo outros jogos de heróis e do próprio Spider-Man, olhamos mais para os quadrinhos antigos. Tivemos acesso a toda a biblioteca, e a gente comeu e bebeu quadrinhos por muito tempo. E é uma leitura atual, muito dinâmica. As referências mudam, mas sempre voltamos à fonte.
Além do próprio personagem, há a questão dos cenários. Como reconstruir uma cidade tão retratada nas artes como Nova York?
Foi razoavelmente fácil. Historicamente, o Spider-Man é um personagem nativo de Nova York. Foi lá que ele construiu seu caráter. E tanto a visão de Peter quanto de Miles ajudaram a nos direcionar para a criação do nosso universo. É Nova York, mas é nossa versão. As pessoas vão reconhecer pontos turísticos clássicos, mas com algumas diferenças. Fizemos bastante pesquisa. Vimos fotos de Nova York, documentários, vídeos. Assisti a muitos documentários para tentar entender algumas coisas que você não pega só pela versão turística. E há também o avanço tecnológico. É um salto muito expressivo do game anterior para esse. Um exemplo é a iluminação, a maneira como trabalhamos a luz num mundo aberto. É realmente impressionante.
E como arte e história trabalham juntos para construir o game?
É um jogo novo, mas a história continua. Uma das coisas que fiquei mais impressionado ao entrar na Insomniac é a maneira como o diretor criativo, Bryan Intihar, trabalha. Tudo é familiar, mas como a gente consegue fazer essa experiência ser nova e fresca para os jogadores é incrível. Não vou entrar em spoilers, mas a ferramenta principal disso, está na história. Claro que há arte no processo, mas o roteiro é realmente muito bom.
Você se vê como uma referência para outros desenvolvedores brasileiros que sonham em trabalhar em grandes lançamentos de games?
Nunca imaginei que estaria aqui. Não tenho faculdade nem estudo nenhum. Sempre fui autodidata. Sem querer, me vejo nessa posição. Por isso, sei que muitas coisas que falo podem ser relevantes para outros brasileiros. Às vezes, qualquer informação, por menor que possa parecer, pode mudar a maneira como eles olham para o mercado. Vou ser sincero. Nunca me imaginei sendo exemplo de nada, mas já que estou nessa cadeira, vejo que tenho essa responsabilidade.
Você dá mentorias para outros desenvolvedores?
Sim. Dou mentorias. Alguns dos esforços são mais discretos e não posso nem comentar muito essas experiências. Sempre faço isso, mas meio quieto, porque não é para o meu portfólio, mas para o deles. É só para passar o bastão. No futuro, espero fazer algo mais estruturado e oficial, como um workshop.