Estudos revelam riscos dos relógios inteligentes para a saúde dos usuários
Eles podem fornecer informações incorretas e interferir no funcionamento de implantes cardíacos
Até pouco tempo atrás, a internet das coisas (IoT, na sigla em inglês) parecia algo reservado para o futuro distante. Nos últimos anos e especialmente durante a pandemia, a tecnologia que torna inteligentes objetos do dia a dia ganhou espaço na vida das pessoas. Depois dos assistentes virtuais e robôs aspiradores, a novidade expandiu-se para roupas e acessórios. Os relógios inteligentes, conhecidos como smartwatches, foram os que mais ganharam adeptos. Diferentes dos tradicionais modelos redondos e metálicos, os imponentes LEDs retangulares ou as discretas tiras emborrachadas venderam como nunca. Em 2020, no auge da crise de Covid-19, as compras de smart wearables — os vestíveis inteligentes — cresceram 81% no Brasil em relação ao ano anterior. Em 2023, espera-se que sejam negociados cerca de 440 milhões de unidades no mundo, um aumento de 6,3% em comparação com 2022.
A principal motivação foi a saúde. Em meio ao colapso sanitário, ter o corpo monitorado o tempo todo poderia ser uma fonte de alívio. Aparelhos como o Pixel, do Google, o Mi Band, da Xiaomi, o Galaxy Watch, da Samsung, e o Apple Watch fizeram sucesso por prometer o monitoramento do sono, das atividades físicas e até de irregularidades cardíacas. Parecia o melhor dos mundos, mas a história pode ser um pouco diferente. Alguns dos modelos mais recentes trazem uma tecnologia conhecida como bioimpedância. Presente em consultórios de nutricionistas e educadores físicos, a ferramenta gera uma pequena corrente elétrica capaz de avaliar a composição muscular, óssea e de gordura do usuário. Acoplada aos relógios, contudo, ela traz alguns riscos.
Um estudo recente publicado no periódico científico Heart Rhythm e realizado por pesquisadores da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, sugere que smartwatches dotados desse tipo de recurso interferem no funcionamento de aparelhos cardíacos. Dispositivos como marca-passos, ressincronizadores e desfibriladores implantáveis dependem da eletricidade para monitorar o coração e manter o seu funcionamento adequado. Por esse motivo, a atividade dos aparelhos pode sofrer influência de correntes que passam pelo corpo. De acordo com o trabalho, mesmo que a eletricidade seja imperceptível para o usuário dos relógios, ela é superior ao que recomendam as diretrizes da FDA, a entidade reguladora dos Estados Unidos e equivalente à brasileira Anvisa.
Para especialistas, os gadgets com a tecnologia da bioimpedância devem ser evitados por pacientes com implantes cardíacos. “Os avanços tecnológicos são muito grandes e nem sempre a ciência anda na mesma velocidade para mostrar a eficácia e a segurança desses dispositivos”, diz Diandro Marinho Mota, cardiologista da Universidade de São Paulo (USP) e membro do projeto de inovação da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). De fato, as ferramentas disponíveis nem sempre sobrevivem ao escrutínio científico. Artigos publicados nos últimos anos apontam que os algoritmos que detectam arritmia e fibrilação têm alta taxa de subnotificação. Da mesma maneira, os monitores de atividades físicas, gastos calóricos ou sono, por utilizarem medidas indiretas, apresentam grande variabilidade entre dispositivos de marcas diferentes.
Não significa, contudo, que os aparelhos devam ser abandonados. Os vestíveis inteligentes, assim como os algoritmos que regem o seu funcionamento, ainda estão no início de seu desenvolvimento e certamente darão origem a dispositivos mais confiáveis. Além disso, os dados que geram inegavelmente auxiliam pessoas sadias a manter a saúde em dia. De todo modo, há muito por avançar. Os monitores de sono, por exemplo, não são acurados o suficiente para substituir uma polissonografia, como é chamado o exame que detecta a qualidade do repouso. Ainda assim, os relógios são capazes de indicar que há algo errado e estimular o usuário a buscar ajuda de um especialista. De maneira semelhante, problemas cardíacos também podem ser identificados pelos aparelhos, o que teoricamente levaria a pessoa a procurar atendimento especializado. Os smartwatches apresentam-se como aliados importantes da saúde, mas eles jamais serão capazes de ocupar o lugar do médico.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842