Existência paralela: game ‘Terra 2’ promete criar mundo semelhante ao real
Mistura de Banco Imobiliário, criptomoeda e realidade virtual, a novidade já nasceu cercada de polêmicas
Viver em um mundo virtual, só com a mente, enquanto o corpo repousa em outro lugar, deixou de ser ficção científica no momento em que os videogames ganharam interfaces sofisticadas e cenários tão realistas quanto produções de Hollywood. Há relatos de pessoas que passam tantas horas lutando, atirando e explorando paragens criadas com códigos de computador que não se relacionam bem com o mundo real quando estão nele. A próxima etapa é chegar ao nível de tecnologia de Jogador Nº 1, filme de 2018 em que os usuários mergulham no sistema com visores, manoplas de movimento e até sensores que provocam dor. Agora, uma nova plataforma, que mistura Banco Imobiliário e criptomoeda, está dando os primeiros passos com o objetivo de reproduzir o planeta em realidade virtual. Seu nome é Terra 2 (Earth 2), e ela já nasceu cercada de polêmicas.
Explica-se a desconfiança: os primeiros usuários, atraídos por propaganda paga nas redes sociais e boca a boca, só podem, no momento, interagir com a fase 1 do projeto, que consiste em um site com um mapa planetário, sobre o qual se sobrepõe uma gigantesca grade que divide a superfície em 5 trilhões de quadrados virtuais, de 10 metros por 10 metros, que o usuário pode comprar. As aquisições são feitas com dinheiro de verdade, que é convertido em E$, moeda de Earth 2 que, por enquanto, está em paridade com o dólar. As possíveis variações futuras do E$ fizeram com que alguns analistas o comparassem ao bitcoin, a mais famosa criptomoeda. A fase 2, que permitirá a exploração do terreno comprado e a realização de obras, está prometida para este ano. No entanto, a fase 3 — a plena realidade virtual — parece estar em um horizonte distante como os filmes de ficção.
Entre dezembro e janeiro, cerca de 12 milhões de dólares haviam sido gastos no Terra 2 em terrenos cujos valores variam de poucos centavos a algumas dezenas de dólares, dependendo da localização. O número de usuários é estimado em 150 000, mas nenhum dado está aberto para ser devidamente aferido. VEJA comprou um terreno no bairro da Liberdade, em São Paulo, por cerca de 15 reais. A interface do programa é, por ora, inteiramente 2D, bastante similar a um mapa on-line de aplicativos. A ideia é que, com o tempo, o universo se torne tridimensional e que o usuário possa entrar nele com a ajuda de óculos ou capacetes de realidade virtual. Os arquitetos do Terra 2 prometem que será possível viajar pelo mundo paralelo, trabalhando e se relacionando com outras pessoas por meio de avatares.
Na fase 2, talvez já seja possível, por exemplo, adornar sua casa com a Mona Lisa (pintura de Da Vinci que, por ser única no jogo como é na vida real, deverá custar uma quantia significativa em E$). Nem os jogadores, entretanto, sabem direito qual será o destino dos prédios já construídos. Perguntam o que vai acontecer com o Empire State Building se o usuário tiver comprado o terreno em Nova York onde ele foi construído. Provavelmente, ele terá o direito de cobrar aluguel dos futuros moradores virtuais, explicam os analistas.
Desenvolver um universo paralelo em uma plataforma amigável não é exatamente inédito — e não se trata, ressalve-se, de apenas usar os pixels para bater tambor de algo palpável no cotidiano, como fazem as grifes de luxo ao divulgar suas peças em jogos eletrônicos (leia na pág. 78). A ideia é criar um outro admirável mundo novo. Em 2003, foi lançado com estardalhaço e procura maciça o Second Life (“segunda vida”), pioneiro no segmento. O objetivo era iniciar uma nova rede social: um ambiente virtual no qual as pessoas pudessem se conhecer e conversar. Depois do espanto inicial, porém, com o passar dos anos, o Second Life arrefeceu devido à dificuldade de criar ambientes virtuais convincentes com a tecnologia da época. Além disso, o surgimento de mídias sociais mais interativas (e reais), como o Facebook, colaborou para derrubar a popularidade do jogo.
Contra o Terra 2 pesa o fato de que os fundadores não anunciaram o apoio de nenhum grande nome da indústria de games — que poderia ser responsável pela construção do complicadíssimo mundo virtual que se pretende criar — nem tampouco esclareceram suas estratégias para migrar da base 2D para a 3D. “A desconfiança é grande porque os criadores não fornecem informações suficientes sobre o projeto”, diz Antonio Sementille, professor de computação na Unesp. Por outro lado, iniciativas embrionárias costumam dar saltos repentinos de força comercial e popularidade, em poucos anos e até meses. Se isso acontecer, quem tiver comprado terrenos à beira-mar no Leblon se divertirá e, talvez, ganhe algum dinheiro.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724
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