“É uma coisa bizarra para mim essas pessoas que vivem no Instagram. Viraram até empreendedores dentro do app. A gente não imaginava isso.” Em tempos de preocupações — vá lá — “compartilhadas” sobre o potencial das redes sociais para viciar os usuários, influir no seu comportamento e alimentar maquinações políticas, seria razoável esperar que tal afirmação viesse de algum acadêmico dedicado ao estudo desse que é o fenômeno mais ruidoso da era da internet. A frase, contudo, foi dita por ninguém menos que um dos fundadores do próprio Instagram, o empreendedor paulistano Michel “Mike” Krieger — que em 2010 lançou o aplicativo ao lado do colega americano Kevin Systrom —, durante um evento recente para empresários realizado no Vale do Silício, Califórnia. O desconcerto de Krieger com sua criação ganha ainda mais peso quando se leva em conta o modo como ele definiu o app, em entrevista a VEJA, dias antes de vendê-lo ao Facebook por 1 bilhão de dólares, em 2012: “Uma rede de visual limpo, exclusivamente para o compartilhamento de fotos”. De lá para cá, o Instagram passou por diversas transformações que o agigantaram e alteraram para valer sua proposta inicial (veja o quadro ao final da reportagem). A mais barulhenta ocorreu no último dia 17: o fim da contagem de curtidas (likes) nos posts.
Ao criticar, no encontro californiano, a forma como algumas pessoas abusam do tempo gasto na rede social, Krieger se referia àquelas que a utilizam para vender produtos — incluindo a si mesmas, no caso de modelos, atores e dos chamados influenciadores digitais. A publicidade no Instagram é um negócio gigante, do qual a plataforma não tira um centavo. Entre os que mais cobram de anunciantes está a celebridade americana Kylie Jenner: 1 milhão de dólares por post. Krieger e Systrom mantiveram-se na companhia por seis anos depois da compra pelo Facebook, mas abandonaram suas hostes em 2018, por conflitos com as novas diretrizes. “Queria ter visto o app seguir em direção diferente. Crescemos, mas ao custo da falta de autonomia”, explicou o brasileiro. Especula-se que a dupla teria se incomodado com o modo como o Instagram passou a ficar cada vez mais similar às outras mídias sociais — inclusive em relação à cacofonia do ambiente virtual, infestado de radicalizações que contribuíram para a ascensão de discursos extremados e para a projeção de populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro.
O projeto, ainda em fase experimental, de acabar com a contagem dos likes no Instagram — agora, só quem fez o post vê quantas pessoas curtiram sua foto — teve início em maio, no Canadá. Após vingar por lá, foi implementado no Brasil. O país é o segundo maior mercado do aplicativo, praticamente empatado com a Índia e atrás dos Estados Unidos, onde há 110 milhões de usuários. Em torno de 70 milhões de brasileiros estão cadastrados no Instagram — o dobro da população canadense. Segundo comunicado da empresa, o objetivo da iniciativa é fazer com que “os seguidores se concentrem mais nas fotos e nos vídeos que são compartilhados do que na quantidade de curtidas”. O aplicativo fala ainda em promover maior bem-estar na comunidade: “Não queremos que as pessoas sintam que estão em uma competição”.
Nos últimos anos, estudos comprovaram os malefícios do tempo excessivo dedicado a sites e apps. Em 2017, uma pesquisa da Universidade de Seul, na Coreia do Sul, revelou que o abuso produz alterações químicas no cérebro, com reações e síndrome de abstinência semelhantes às sofridas por dependentes de drogas. Há consenso entre médicos de que permanecer acima de três horas diárias conectado pode tornar o hábito prejudicial. No Brasil, onde 62% da população tem perfil em mídias sociais, a média é de nove horas on-line — quatro delas dedicadas à navegação pelas redes. Levantamento realizado no ano passado pelo órgão inglês Royal Society for Public Health apontou o Instagram como a mídia social com o pior impacto na saúde mental, responsável por sentimentos de ansiedade, depressão e solidão.
Antes do fim das curtidas, o Instagram já adotara, principalmente desde 2017, outras medidas que visam a transformar o ambiente virtual em uma ágora de conversas mais, digamos, saudáveis. “As redes têm testado mudanças de design que significativamente contrariam o que faziam antes. O objetivo aparente é terem um impacto social mais positivo, tornando-se assim, elas mesmas, melhores ‘cidadãs corporativas’ ”, diz o engenheiro americano Aviv Ovadya, fundador do Centro de Responsabilidade para Mídias Sociais da Universidade de Michigan.
O Instagram já lançou uma ferramenta para controlar o tempo de uso e outra que funciona como filtro de comentários ofensivos, além de recursos que oferecem apoio a indivíduos que demonstrem sinais de depressão ou sejam alvo de ataques agressivos (o bullying virtual). O próprio Facebook tem seguido a tendência, com esforços para banir perfis considerados extremistas — como neonazistas —, diminuir a repercussão de notícias falsas e fomentar diálogos mais fraternais. Nos bastidores, comenta-se que, se der certo no Instagram, o fim da exibição do número de likes em um post também poderá ser adotado pelo Facebook.
Na esfera virtual, o fim dos likes ganhou aplausos e vaias (leia frases abaixo). De acordo com levantamento realizado pela agência Sprinklr, a pedido de VEJA, com base na análise de 570 000 tuítes, entre os comentários que expressaram alguma opinião, cerca de 60% apoiaram, enquanto 40% foram contra. A maioria dos influenciadores digitais que já conquistaram audiência está no primeiro grupo — caso do youtuber Felipe Castanhari, por exemplo. Do outro lado ficaram uma parcela dos microinfluenciadores — que têm alcance menor que o das celebridades estabelecidas e dependem, em parte, da exibição de curtidas para vender-se a marcas dispostas a patrociná-los — e políticos como o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ), famoso por manifestações intempestivas nas redes.
Por trás da imagem de bom-mocismo que agora esses gigantes do Vale do Silício querem passar, existem, é claro, interesses comerciais. “Se a relação com nossos produtos for mais positiva, é natural que as pessoas fiquem dispostas a ver conteúdo de qualidade neles”, diz a advogada Daniele Kleiner, gerente de bem-estar do Facebook na América Latina. Por “conteúdo de qualidade” entenda-se também “anúncios” — a fonte de lucro das mídias sociais. Avalia o psicólogo Rodrigo Nejm, diretor da ONG SaferNet, dedicada à promoção de um ambiente saudável na internet: “Essas plataformas podem fazer bem, desde que se consiga acessá-las com senso crítico. O fim da exibição das curtidas ajuda nisso”. O interesse financeiro das redes, afinal, pode coincidir com o bem-estar dos usuários.
“Essa vida de rede social te suga. Suga o tempo, suga energia física e psicológica. Vicia.”
Lucas Feuerschütte, conhecido como Luba, youtuber, no YouTube
“Eu acho bom.”
Marcos Palmeira, ator global, no Instagram
“Muito legal o Insta ter tirado as curtidas. Muitas pessoas vão se beneficiar.”
Maisa Silva, atriz e apresentadora de TV, no Twitter
“Viva o fim do LIKE! Já vi muitos se frustrando simplesmente por não ter um número ‘x’ de likes em determinada foto, e isso faz mal.”
Felipe Castanhari, youtuber, no Twitter
“Tudo para a gorda feminista peluda do cabelo roxo não ficar deprimida ao ver o desempenho da coleguinha na rede.”
Carla Zambelli, deputada federal (PSL-SP), no Twitter
“Não concordo com essa política porque os likes são importantes para os negócios.”
Arthur do Val, youtuber e deputado estadual (DEM-SP), no YouTube
“As justificativas usadas para não mostrar as curtidas no Instagram, como combate ao bullying e suas derivações, são apenas a certeza de que seguem a cartilha ideológica ‘progressista’. Querem limitar o interesse da informação e criar manipulados.”
Carlos Bolsonaro, vereador (PSC-RJ), o filho Zero Dois do presidente Jair Bolsonaro, no Twitter
“Não acho que a real intenção do Instagram é se preocupar de fato com a saúde dos usuários.”
Maju Trindade, modelo e youtuber, no Twitter
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645