Não tem erro: se um produto chega aos estandes e vitrines da Consumer Electronics Show, a CES, em Las Vegas, nos Estados Unidos, é porque caiu na real e logo estará nas lojas — salvo, claro, as derrapagens de sempre e os imprevistos comerciais. Agora em 2024, a feira foi amplamente dominada pela inteligência artificial (IA). A mensagem: a IA, que decolou tratada como algo etéreo, um tanto escondido, para muitos exageradamente celebrada, deve ser considerada com mais objetividade. Ela chegou aos lares, desembarcou no cotidiano. É incontornável, o que não significa absolvê-la de preocupações em torno dos nós éticos. Enfim, não se trata mais de enxergar apenas algoritmos onde há concretitude, o mundo como ele é.
Para além da astuciosa engrenagem que governa as escolhas de filmes, músicas e até as postagens que são exibidas nas redes sociais, a IA já é usada para aumentar a eficiência e produtividade e diminuir os riscos de acidentes no dia a dia das empresas. A brasileira Raízen, por exemplo, grande exportadora de açúcar, calcula as safras de cana-de-açúcar com um ano de antecedência, com a ajuda da Space Time Analytics. A novidade, esta que bateu tambor na CES, é o jeitão doméstico da IA, mais palpável. E palmas para uma vastidão de boas ideias, como o sistema gerenciador das casas, as bicicletas conectadas a softwares e as geladeiras espertas (veja no quadro). Bem-vindo, portanto, a uma nova era.
Para o mercado, um produto com IA integrada não representa, ainda, aumento de vendas. A tecnologia embarcada, por ficar à sombra, “escondida”, não é traduzida como algo espetacular, ímã de interesse. Passa quase como solução evidente dos fabricantes, embora não seja tão simples. O que a IA transporta é a força de uma marca no mercado, indício de estar atenta ao novo, de olho nos interesses da sociedade, sempre na crista da onda. “Virou valor agregado”, diz Diego Senise, CEO da Ilumeo, consultoria de dados do setor de tecnologia.
Para cativar os consumidores, os fabricantes precisam oferecer vantagens claras e atrativas. É uma mudança radical em relação à CES de 2023, em que a IA era apenas um dos diversos temas abordados pelo evento. Realizada algumas semanas depois do lançamento do ChatGPT, o chatbot generativo que responde às dúvidas dos usuários com surpreendente eficácia, a feira do ano passado não deu conta da gigantesca transformação que acontecia. Agora sim, a revolução chegou, cavalgando no sucesso do ChatGPT. Embora a IA exista há muito tempo, rodando em aplicativos como os do Uber e da Netflix, o ChatGPT mudou o tom da prosa, e didaticamente a civilização pôde aprender para que poderia servir o salto para o futuro. “Foi como dormir na era da pedra lascada e acordar na espacial”, diz Cezar Taurion, executivo da Redcore, consultoria especializada em inovação.
Afinal, a noção de IA não é exatamente nova. A expressão “inteligência artificial” foi cunhada em 1956, durante uma conferência na Universidade Dartmouth, nos Estados Unidos, onde especialistas em neurociência, engenharia, matemática e computação começaram a trabalhar juntos na criação de um cérebro artificial. Anos antes, o matemático britânico Alan Turing (1912-1954) criou uma máquina, batizada com seu nome, capaz de executar processos cognitivos, quebrados em etapas individuais, representados pelos algoritmos.
Suas aplicações, no entanto, evoluíram muito. E passaram a fomentar dilemas éticos e sociais. O mais premente, sem dúvida, é a coleta de dados dos usuários. É um problema inerente à era da internet e ganhou ainda mais relevância com a capacidade de aprendizado das máquinas. Mas não é o único. Há um receio de que profissões perderão espaço para robôs — um movimento que sempre acompanha o surgimento de grandes revoluções. Teme-se, ainda, que a capacidade dos seres humanos de controlar as máquinas fique cada vez mais reduzida. Segundo especialistas, a previsão é de que até 2040 elas tenham 50% de chance de alcançar o nível da inteligência humana, e 90% até 2075.
Fala-se muito de IA com fascínio e receio. Mas, assim como aconteceu com a internet, especialistas acreditam que ela se tornará algo tão corriqueiro na vida de todos que deixará de despertar tanta atenção — será como o oxigênio que respiramos. Por isso, a festa da CES tem relevância inédita, a celebração de um capítulo da civilização. Para quem andava desconfiado, desdenhando das surpresas feitas de silício, um aviso: não tem mais volta. Mas pode ser útil e divertido.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875