Há um bom termômetro para medir a temperatura do mercado de carros global: o Salão de Tóquio, que neste ano acontecerá no fim de outubro. Em iniciativa inédita, ele foi rebatizado de Salão de Mobilidade. A mudança é retrato da revolução em curso, movida a preocupações ambientais (salve a expansão dos veículos elétricos!) e atenção ao ir, vir e estacionar em metrópoles apinhadas de gente. Já não se trata, portanto, de apenas apresentar lançamentos. É hora de resolver os dilemas da civilização motorizada. Nessa estrada, convém ressaltar uma das estrelas da festa, símbolo do que vem por aí: o CI-MEV, um protótipo de microcarro eletrificado da Honda.
Sua proposta é garantir o deslocamento rápido, barato e seguro para pessoas sem acesso a transporte público próximo de suas casas e evidente alternativa para trajetos mais curtos em lugares de trânsito pesado. Não é certo que o CI-MEV chegará ao mercado tão cedo, mas ele mostra que há sinal verde para a caminhada de microcarros, renascidos por imposição de tempos tão bicudos para a humanidade. No Japão, há uma categoria específica, chamada de kei car, ou “automóvel leve”, criada pelo governo em 1949, ao cabo da II Guerra e da crise econômica que a sucedeu. As normas para esses carrinhos, por assim dizer, são claras: há limitações de tamanho e potência, de forma a se adequarem a ruas estreitas e cidades extremamente populosas. Nenhum pode ultrapassar 3,4 metros de comprimento, 2 metros de altura e 1,48 metro de largura e seus motores devem ter, no máximo, 63 cavalos.
Eles também são baratos, têm isenção de impostos e bebem pouco combustível — e agora, plugados na tomada, conquistam relevância ainda maior. No mercado interno japonês, representam 34,1% da frota, de acordo com dados da consultoria Jato Dynamics. Para além das fronteiras orientais, contudo, ainda lutam para conquistar espaço, em movimento crescente e animador (embora, ressalve-se, no Brasil eles só despontem em garagens de colecionadores de clássicos dos anos 1980 e 1990 que saíram de linha). Na Europa, contudo, o vento é favorável.
O caso mais emblemático no Velho Continente é o do Microlino, modelo totalmente elétrico projetado na Suíça e fabricado na Itália que comporta apenas dois passageiros. Apesar do tamanho diminuto — são apenas 2,5 metros de comprimento, 1,47 metro de largura e 1,5 metro de altura —, o veículo chega a 90 quilômetros por hora e tem 230 quilômetros de autonomia com uma única carga. Apesar da tecnologia de ponta embarcada, o design remete a um clássico modelo da década de 1950, a Isetta, que por aqui ficou conhecida como Romi-Isetta e foi o primeiro carro fabricado no Brasil. Era capaz de rodar 100 quilômetros com apenas 3 litros. O design charmoso chamava atenção. O humorista Jô Soares (1938-2022) tinha um em sua coleção particular.
A nova versão, mais moderna e ambientalmente correta, mas de apelo retrô, atingiu a marca de 1 000 unidades vendidas. Ainda é pouco, mas o setor se movimenta. Hoje, o Microlino é o principal garoto-propaganda da Coalizão dos Microcarros, iniciativa lançada em meados de junho deste ano, que inclui outros fabricantes, como o City Transformer, que propõe um desenho para um único passageiro, e o Circle, criação de uma startup de Pasadena, na Califórnia. “A ideia é revolucionar o futuro da mobilidade urbana e devolver o espaço das cidades às pessoas”, diz Oliver Ouboter, cofundador da Microlino.
O Brasil, contudo, parece andar na contramão do bom senso, ao menos no zelo com o trânsito e o ar que respiramos. Os grandalhões SUVs já representam quase metade dos carros vendidos por aqui, segundo dados da Fenabrave, a associação de distribuidores de veículos. Há um movimento da indústria de trazer opções ainda maiores, como as picapes full-size, tão populares nos Estados Unidos. Há uma oferta tímida de carros pequenos, como o Fiat Mobi e o Renault Kwid, conhecidos como subcompactos, e os hatchbacks, antes a categoria dominante do setor, hoje estão quase em extinção. Os veículos elétricos ainda representam uma fatia pequena, e o preço exagerado, dado o volume de impostos, parece torná-los inviáveis. Para além do valor, porém, há uma questão cultural. O consumidor brasileiro tem gosto semelhante ao dos americanos, que preferem carros grandalhões. Há alguns anos, o diminuto Smart chegou a ser vendido para brasileiros, mas, com o tempo, virou mera curiosidade. Nada que não possa tomar outro rumo, porque o mundo busca saídas. Pequenos e limpos — eis uma boa solução.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862