Na quarentena, o carro virou abrigo seguro (e ganhou sobrevida)
O veículo particular, artigo constantemente ameaçado pela economia compartilhada, parece ter renovado seu apelo na pandemia — e mesmo depois dela
Nos anos 1970, o engenheiro austríaco Hermann Knoflacher, da Universidade de Viena, lançou um conceito que batizou de Gehzeug, neologismo do idioma alemão que pode ser traduzido como “andamóvel”. Ele montou uma estrutura oca com as proporções de um carro de passeio e se pôs sentado, circulando pelas calçadas, no centro do retângulo vazio, como se estivesse ao volante do automóvel imaginário. O experimento de Knoflacher visava a criticar o espaço ocupado pelos veículos motorizados nas cidades. A ideia iconoclasta foi celebrada.
Com certo atraso, é verdade, muita gente passou a compartilhar o ponto de vista do provocador austríaco e, nos últimos tempos, era cada vez maior o número de pessoas que escolhiam abandonar o carro como a forma preferencial de locomoção em favor de outros meios de transporte, coletivos ou compartilhados. Mas então, como em diversos setores da sociedade, veio a pandemia do coronavírus. E, de repente, o corpulento retângulo de metal movido (em sua grande maioria) a combustíveis fósseis voltou a ser uma alternativa interessante, uma boa saída.
As determinações de distanciamento social fizeram do automóvel particular uma redoma segura, uma espécie de abrigo sobre rodas. Ele nos mantém isolados uns dos outros, permite retomar certos hábitos cotidianos e, por que não, aliviar a ansiedade por passar tanto tempo em confinamento dentro de casa, entre quatro paredes. Não é à toa, portanto, que certos modismos do passado ganharam força nos últimos meses, no Brasil e no mundo. Um deles, que parecia abandonado de vez, é o do cinema drive-in, criado nos Estados Unidos dos anos 1920, os “anos loucos”.
Hoje, na Europa, as pistas dos aeroportos ociosos e espaços descampados tornaram-se salas de exibição ou casa de espetáculos a céu aberto. Pessoas sozinhas, casais e famílias puderam, enfim, rever filmes em telas gigantes ou acompanhar apresentações musicais de dentro de seus carros. No Brasil, a ideia já encontrou eco em metrópoles como Rio e Brasília. Em São Paulo, o Allianz Parque, estádio do Palmeiras, anunciou que a partir deste mês abrirá suas portas para sessões de cinema no estilo drive-in com capacidade para 280 veículos — aos palmeirenses, um aviso: o gramado é sintético e não deve ser prejudicado pelo entra e sai motorizado.
Outro conceito batido das grandes metrópoles ganhou nova roupagem durante o ápice da pandemia. O sistema drive-thru, que há até pouco tempo servia apenas para matar a fome, passou a contemplar não apenas serviços, mas outros tipos de eventos sociais. Hoje existe drive-thru de formatura escolar, de aniversário, de chá de bebê. Em Curitiba, o padre Reginaldo Manzotti, responsável pelo Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, na capital paranaense, decidiu atender ao pedido dos fiéis e passou a promover o rito da eucaristia a quem passava em frente à igreja. “Com as missas privadas, sem público, as pessoas ficaram sedentas por Deus”, afirma Manzotti, um dos mais populares párocos católicos do país (tem 3 milhões de seguidores no Instagram). Em três domingos do mês passado, das 9 da manhã ao meio-dia, Manzotti ofereceu a comunhão a cerca de 4 600 pessoas que passaram de carro. Ele deve repetir o serviço espiritual no dia de Corpus Christi. “Com segurança, pude acalmar pessoas doentes, com sonda, idosos. Fiquei muito emocionado”, diz.
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Clique e AssineE quando a pandemia passar, o que será do automóvel de passeio? Para muitos especialistas no setor, mesmo depois de viabilizada uma vacina contra o novo coronavírus, muitos daqueles que não viam o carro particular como uma prioridade podem recorrer a ele novamente como um meio mais seguro para a saúde. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos em trinta países, entre eles o Brasil, 30% dos entrevistados estão mais propensos a comprar um automóvel depois da crise da Covid-19. “Não creio que a retomada do interesse pelo carro particular seja um fenômeno passageiro”, disse a VEJA Giulio Salomone, vice-presidente da consultoria Capgemini. “O verbo pode não ser mais comprar, mas haverá uma evolução do uso do automóvel.” Ricardo Bacellar, líder do setor automotivo da KPMG, também aponta para essa expectativa. “O uso do carro está relacionado com a oferta de mobilidade de uma determinada região. Mesmo em uma grande metrópole como São Paulo, onde há vários meios de se locomover, as pessoas podem voltar ao carro particular em razão da crise sanitária pela qual passamos”, diz. O automóvel, que parecia fadado ao colapso, ganhou sobrevida.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690