Nostalgia do amanhã: as grandes promessas da tecnologia que não decolaram
Durante décadas, imaginamos veículos voadores, robôs e uma parafernália de invenções futurísticas que nunca despontaram
Era uma promessa com estardalhaço equivalente ao anúncio de que o Rio Sena estaria limpo para as provas do triatlo e da maratona aquática na Olimpíada e na Paralimpíada. E então, no céu de Paris, ali onde Santos Dumont contornou a Torre Eiffel com o dirigível de número 6, em 1901, e depois pôs para voar o 14-bis no Campo de Bagatelle, em 1906, haveria um desfile de eVTOLs, os veículos elétricos de decolagem e pouso vertical, funcionando como serviço de táxi. Só que não, e tudo não passou de quimera adiada sabe-se lá até quando. A falta de infraestrutura, a inexistência de regulamentos e baterias de autonomia escassa prenderam a ideia ao chão e os parisienses, ao olhar para cima, viram o firmamento como antes, tingido com as cores da frustração.
Os minutos de televisão e internet gastos com os eVTOLs, os centímetros de jornais e revistas — e VEJA chegou a anunciá-los, um ano antes — terminaram em silêncio. Ficou para as próximas, e o fracasso, chamemos assim, ampliou um fato de nosso tempo: cadê o futuro que estava aqui? Dito de outro modo, nas palavras do poeta Paul Valéry (1871-1945), o “futuro não é mais como costumava ser”.
As previsões que uma vez, lá atrás, na primeira metade do século XX, um pouquinho depois, talvez, nos entusiasmaram falharam ao vislumbrar a essência do que estaria por vir — e inapelavelmente não veio. O amanhã raramente segue o caminho que imaginamos, e as inovações que transformam vidas muitas vezes chegam de maneiras inesperadas, sem que fosse anunciado por um livro, um filme ou um desenho animado. E adeus ao cotidiano suposto, para ficar em um exemplo simples e pop, pelo seriado Os Jetsons, lançado nos anos 1960. Ora, por que não robôs que cuidassem de tarefas domésticas? Por que não carros voadores? Poderíamos pôr na mesma conta os autônomos, que há anos pareciam estar prontos para vir à luz e frearam. Ok, nenhum futurólogo cravou a espetacular dimensão da internet e de um iPhone. Ninguém ousou imaginar que crianças e adultos estariam eternamente debruçados em telas de smartphones ou entrariam em desespero ao descobrir que um juiz, de um certo país, mandou tirar do ar uma determinada rede social, e dá-lhe a terrível síndrome de abstinência. Mas as imagens futuristas, de cidades inventadas, talvez nunca brotem.
Melhor dizendo: há saltos, mas os avanços tecnológicos trataram de se espalhar à sombra, calma e docemente. Um excelente livro lançado recentemente, The Long History of the Future, da jornalista britânica Nicole Kobie, mostra por que a espetacularização foi um erro, atropelada pelo passar dos anos. Para ela, a obsessão com a grandiosidade e o impossível — ah, os Jetsons — nos impede de reconhecer as ideias que realmente fazem diferença. O progresso muitas vezes é silencioso. Melhor prestar atenção na realidade dos trens-balas, adaptação eficiente de uma possibilidade efetiva, do que apostar nos hyperloops — os trens de altíssima velocidade em tubos a vácuo, uma das “maluquices” de… de… Elon Musk. “As projeções do futuro também estão ligadas às projeções de poder do presente. Portanto, quem sonha com o futuro geralmente sonha com seu próprio poder dentro desse contexto”, diz Luís Mauro Sá, cientista social e professor da Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo.
Não há dúvida, é um jogo de poder construído por empresas gigantes, como as do Vale do Silício, que ditam o que seremos — embora nem sempre acertem o alvo, e muitas vezes acabam sendo interrompidas por dificuldades inimagináveis. O psicólogo americano Abraham Maslow (1908-1970) definiu esse xadrez com uma frase antológica: “Se a única ferramenta que você tem é um martelo, é tentador tratar tudo como se fosse um prego”. Como nem tudo é prego, evidentemente, cabe e sempre caberá um freio de arrumação, porque o futuro não é como antigamente, não mesmo.
Caminhávamos para alguma novidade, algo que parecesse com as visões do passado olhando para a frente, quando despontou com força inesperada a inteligência artificial (IA), que faz mágica com uma carta escondida na manga: ela trabalha nos bastidores, invisível, como onda que corre no mar, ocupa os espaços, toma o formato do que já existe. É o óleo — um tantinho escondido — que faz mover as engrenagens da civilização, sem que sejam necessários objetos que nunca existiram, como um eVTOL. A IA fez o cenário do futuro mais complexo e chega de bola de cristal. De Yuval Noah Harari, que acaba de lançar Nexus — Uma Breve História das Redes de Informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial (Companhia das Letras): “A IA é a tecnologia mais poderosa já criada pela humanidade, porque é a primeira que pode tomar decisões: uma bomba atômica não pode decidir quem atacar, nem pode inventar novas bombas ou novas estratégias militares. Uma IA, ao contrário, pode decidir sozinha atacar um alvo e pode inventar novas bombas”. Quem haveria de costurar um futuro como esse, quase intangível?
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909